sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

O ÚLTIMO TIRO - PARTE III

III – NA PRESENÇA DE ZEUS AS DORES DOS OUTROS DEUSES ERAM PEQUENAS

"Netuno foi chamado ás pressas á presença de Zeus, que o colocou sentado diante de um grande tabuleiro de xadrez de cristal líquido, mostrando a ele o quão a vida é um jogo, e as pedras – quando erroneamente movimentadas – podem causar dilúvio nos olhos e no coração. Netuno ainda possuía os olhos vermelhos de choro e de vingança. Trovões rimbombavam furiosos no espaço do céu, fazendo tremer os pilares do grande templo. Na presença de Zeus, as dores dos outros deuses eram pequenas. Ele portanto, disse:
“Cedi-lhe a mortalidade e movestes as pedras erradas.”
“Foi o amor, Zeus, o amor deles é profundo demais.”
“Mas não vives nas profundezas?”
“A profundeza deles é mais profunda.”
“A sua é que é, e não a deles. Queres o castigo que dei a Atlas?”
“Não! O universo é pesado demais.”
“Então aprendes a mover corretamente as pedras do tabuleiro.”
Aí o celular vibrou sobre a mesa de metal e eu atendi. De novo interrompido. Sou sempre interrompido. Minhas divagações, meditações, minha paz, minhas linhas... mas daquela vez foi diferente. A voz do outro lado era feminina e doce e eu a conhecia tão bem que demorei a acreditar:
_Mário? oi, é a Clarice!
Não acreditei mesmo. Ajeite-me melhor na cadeira.
_C-Clarice? _ A maldita gagueira
_Surpreso?
_Pô, muito. (Se vocês pudessem ver o meu sorriso; minha alma amarela saltitando de alegria.)
_Soube do acidente. Como vai o braço?
_A mão. Foi a mão.
_Como vai a mão?
_No frio ela dói um pouco.
_Vai sarar.
_Não sara não.
_ Não faça drama, Mário. Escreva.
_Não consigo escrever quando estou sentindo dor. A dor atrapalha.
_Dramático como sempre...
Ai fez um pouco de silêncio.
_Quanto tempo depois daquele almoço. _Eu disse.
_ Usei as pétalas como marcador de livros.
_As rosas eram suas.
_Sei...
Outro silêncio.
_E você? O que faz da vida? Perguntei.
_Estou indo pra São Gabriel da Cachoeira. Residência médica.
Senti aquela alfinetada no peito.
_Saudades de nossas tardes...
_Também.
_Quando voltas?
_Um ano de residência.
_E o livro do Garcia Marquez, lestes?
_Adorei.
_Estou aprendendo a ter a paciência de Florentina Ariza.
_Literatura, Mário. Ninguém espera tanto.
_Achas mesmo?
_Acho.
_Espero você voltar.
_Um ano apenas. Nada se compara a 53 anos, 7 meses e 11 dias. Não foi o tempo que Florentino Ariza esperou por Fermina Daza?
_Espero você a bilhões de anos, esqueceu?
Risos do outro lado, e um outro silêncio.
_Estás onde? _Perguntou ela.
_Em um bar.
_Então estás bem. Preciso desligar agora. Beijos querido!
_Quando me ligas de novo? _Quis saber apressado.
_Um dia desses... eu ligo.
E desligou. Olhei para um céu enlutado e não vi estrelas. Nenhuma. Mas elas estavam lá, em algum lugar, escondidas. Rindo. Estrelas não choram. Um vento frio e forte soprava, enfiando seus dedos laminados na minha carne. O aparelho ainda tremia nas minhas mãos. Olhei para os lados. Aquela hora ainda havia pouca gente no Castelo e eu me senti imensamente compensado com o telefonema de Clarice. Segundos de completa felicidade. Era tudo de que eu mais precisava naquele momento. Se existia uma mulher que haveria de me causar alegria súbita na alma, essa mulher era Clarice. Presente nos momentos de fraturas. Expostas ou não. Um tiro. É. Clarice é como um tiro que atravessa a gente e não se aloja em canto algum da imperfeição do espírito. Fiz subir a fumaça do meu cachimbo e respirei bem fundo o ar daquela noite fria. E continuei rascunhando:

"As pedras ali dispostas no imenso tabuleiro de cristal líquido mostravam nítida vantagem a Zeus que, naquele instante, movia sua torre para a casa 05, dando-lhe um mate ao rei. Netuno ficou um longo instante calado. E finalmente disse:
“Procurei achar as variantes certas que justificassem a tentativa de traição e armadilha, mas não consegui.” Lamentou-se olhando a jogada. O tridente entristecido descansava ao seu lado.
“O amor tem um efeito sedativo e causa cegueira também.” Disse Zeus enfastiado.
“Achei que o certo seria jogar com os peões, mas decidi calcular as variantes.” Justificou-se Netuno.
“Deixou a partida ser levada pelas ondas. Erro crasso.”
Netuno levantou os olhos vermelhos.
“E quanto Hérbaro e Cécila, meu Zeus?”
“Serão castigados, ambos. Agora vai e não vaciles mais...”
Foi aí então que começou a cair pingos de dores secretas do céu e eu cambaleei para dentro do Castelo para junto dos outros heróis...

Para Mariza Marques...


em breve "O HOMEM QUE PERDEU O CU".

(novela)

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