quinta-feira, 17 de maio de 2012

O ANÃO

PARTE IV - Era estranho ter um anão em casa. Mas Da Cruz estava me saindo melhor que a encomenda: lavava, passava, cozinhava. Passou a cuidar das minhas unhas também. Pés e mãos. Coisa que Selminha já não fazia mais. Quando a mulher se descuida das unhas do marido, é porque sua devoção por ele acabou. A devoção de Selminha por mim tinha acabado há muito tempo. Eu é que ainda não havia sacado isso Ou não queria ver. Mas voltamos ao anão. Ele e eu ficamos bons amigos. Como se fossemos marido e mulher de verdade, bem no início de uma relação. Nos fins de semana – para compensar todo o seu empenho doméstico - eu o levava para passear no cais. Mostrava-lhe os navios como fazia meu pai. Numa ocasião expliquei: “Meu pai trazia-me aqui para olhar os navios. Mas eu não sou seu pai, entendeu?” Ele apenas ria, divertindo-se com os mergulhões. Depois íamos bebericar de leve pelos botecos adjacentes da orla. As pessoas olhavam para nós dois. Era divertido. Os amigos de copo diziam: “Mário Augusto enlouqueceu. Deixou a Selminha para viver com um anão.” Mas eu não ligava muito pra isso. Havia retomado minha ordem cerebral. Um sopro novo de vida, o anão me trouxe. Lia para ele os meus contos. Velhos e novos. Tinha agora com quem compartilhar as minhas estórias malucas. Selminha não tinha mais paciência de ouvir minhas estórias. Achava-as absurdas demais. Dizia que eu não tinha visão romântica. Acho que nunca tive mesmo. Mas o anão gostava do que eu escrevia. Ouvia minhas estórias com atenção. Não dava palpites. Experimentava uma felicidade momentânea ao lado daquela criaturinha que vi surgir. Sim, surgir. Da Cruz era uma prova empírica daquilo que sempre acreditei: anões não nascem. Surgem.

terça-feira, 15 de maio de 2012

UMA AVENTURA NA AMAZÔNIA

O professor Fábio Marcellus já está com seu mais novo livreto circulando pelos bairros, centro e bares de Manaus. O livreto chama-se "Uma Aventura na Amazônia" – pela Comuitosacrifício Editora, 2012, Manaus – Am. Com seu estilo irreverente e seu conhecimento empírico sobre a região amazônica – que o mesmo certamente adquiriu com as muitas incursões que fez pela regiâo, quando trabalhou como guia turístico, o autor nos conta uma verdadeira odisseia que um grupo de turistas europeus vivencia ao se depararem pela primeira vez com os mistérios, as riquezas e os encantamentos da nossa floresta. O livro, além de narrar essa aventura pitoresca e por vezes dramática, cujo estilo e passagens nos faz lembrar muito as aventuras de Júlio Verne, paramos para pensar o quanto devemos preservar o que há de mais sagrado e inviolável que existe em nosso planeta o qual somos responsáveis. (...) “Próximo da árvore robusta onde estava a musa que me tirara do caminho, havia outra árvore com sapupemas iguais as que nós vimos na caminhada no segundo dia pela manhã. Essas sapupemas formavam duas paredes laterais onde encostei minhas costas no tronco dessa árvore gigantesca, acendi um cigarro e conclui que a melhor coisa a fazer era ficar entre aquelas suas sapupemas, ouvir os sons misteriosos da mata e esperar...” Vale a pena acompanharmos mais essa aventura narrada pelo autor de O Avião e o Rábula, e conhecer um pouco mais do seu mais recente trabalho que certamente o leitor se sentirá compensado do seu início ao fim. Márcio Santana

FRAGMENTOS EM PRIMEIRA PESSOA OU CHAME A ISSO DO QUE QUISER

Chegou-me em mãos no último sábado – durante uma exposição de fanzines no evento da banda de rock, Antiga Roll – o livreto, FRAGMENTOS EM PRIMEIRA PESSOA OU CHAME A ISSO DO QUE QUISER, Coleção de rua, 16 páginas - Manaus, Amazonas, do autor Jeovane Pereira, o qual, na ocasião, tive o privilégio de conhecê-lo pessoalmente. O opúsculo é um mergulho ás reminiscências de infância de alguém em busca da essência da poesia. Um rosto a mais no vasto universo das ruas. Um anônimo. E á medida que este anônimo vai mergulhando no abismo de suas lembranças, imergimos com ele nos envolvendo com o encantamento de suas palavras. “(...) Se eu fosse relatar todas as lembranças da minha infância, passariam-se dias e mais dias e você não seria capaz de encher folhas e mais folhas de papel com sua escrita...” Nos fala este anônimo, personagem morador de rua, sujeito maltrapilho, barbudo, de natureza pacífica, e que ao dedilhar as cordas do seu violão, cria sons que acabam contagiando as profundezas de nosso mais profundo íntimo, criando leis que regem o nosso próprio universo. Jeovane tem a técnica e a leveza da escrita. Seus fragmentos são poéticos e de imagens fortes que ficam marcadas na mente, como a passagem em que o personagem relembra o cachorro Rex, muito querido pela família, mas que ao ser contaminado pela raiva teve que ser executado a tiros e pauladas, e em seguida, jogado nos entulhos nos arredores da cidade, aparecendo no dia seguinte, á porta da casa, ensanguentado e deformado, soltando grunhidos aterradores. (...) “No retorno das aulas era só alegria: o Rex saía correndo ao meu encontro, latia, pulava com as patas no meu tórax sujando o meu uniforme escolar, lambia meu rosto... Como me divertia quando os sapatos eram rasgados, as sandálias escondidas e as meias mastigadas como se fosse a melhor brincadeira do mundo. Infelizmente o cão teve um fim trágico. Foi contaminado pela raiva. Meu pai não se achou com coragem e pediu para que outras pessoas pusessem fim àquele drama. Fiquei sabendo depois: atiraram no Rex e o encheram de pauladas até concluir que ele estava morto. Levaram-no e jogaram-no num entulho nas proximidades da cidade. No dia seguinte, bem cedo, o Rex amanheceu na porta da cozinha de nossa casa soltando grunhidos aterradores, todo ensanguentado e deformado. Foi muito triste. Ficamos muito sentidos. Foi como se tivesse acontecido com alguém de nossa família. Nunca mais tivemos outro cachorro...” Mais que um relato de reminiscências, Fragmentos em Primeira Pessoa ou Chame a Isso do que quiser, é certamente um exercício Proustiano e fascinante que com certeza encantará o leitor e ficará impregnado na sua mente. Márcio Santana Manaus, 15.05.2012

quarta-feira, 9 de maio de 2012

O ANÂO DO AÇOUGUE - PARTE III

A SOLIDÃO É UMA PEDRA TUMULAR Era uma manhã mais ou menos como esta: cinza e soluçante. Eu me recuperava mais ou menos da perda. Entrei naquele açougue para comprar carne. Um anão saiu dos fundos e veio me atender. Tomei um susto. Nunca tinha visto aquela criaturinha antes. Conversando com ele, me disse que já estava ali há anos. Eu é que nunca havia reparado nele. “Como pode isso ter acontecido, não é mesmo meu camaradinha?” Brinquei. O anão que se chamava Da Cruz, fez um gesto amigável de, Ah, deixa pra lá. Fui para casa pensando no anão. Seu aventalzinho sujo de sangue. Os olhos tristes e baixos de um cãozinho desamparado atestavam cuidados paternos. O anão preencheria o meu vazio. No dia seguinte, voltei lá para conversar com o anão: “Escuta, meu camaradinha, cê gosta do que faz aqui?” O anão me olhou assim e disse: “Pra ser sincero, meu patrão, não gosto, não. Ganho mal e já não posso mais pagar o aluguel.” “Que cê sabe fazer?“ “Sei cozinhar e muito bem.” “Quer vir morar comigo?” Os olhinhos do anão brilharam. Aquilo quis dizer um sim. Levei o anão para morar comigo. Não sei viver sozinho. A solidão é uma pedra tumular... (continua)

terça-feira, 8 de maio de 2012

O ANÂO DO AÇOUGUE

PARTE II - SEPARAÇÃO Naquele mesmo dia havia estourado toda a grana e voltei bem tarde para casa. Bêbado, fedido; aos pedaços. Tomei um banho demorado, bati uma punheta pensando na Dagmar e me enfiei na cama ao lado de Selminha que dormia como uma pedra. Tive sonhos pesados. Num deles sonhei que eu era um imenso barco e que naufragava em merda. Meus pulmões se enchiam de merda. Me afogava em merda. Selminha me deu umas cotoveladas e eu despertei daquela premonição on~irica, escrota. Ela, ao contrário, havia sonhado com cobra. Acordou cedo toda pronta e cheirosa me dizendo que havia sonhado com cobra. "Sonhei com cobra esta noite, e cobra é traição." "Que cê quer dizer?" "Que para mim chega, Mário Augusto." Depois ouvi seus passos pela cozinha. O seu perfume forte. O toktok frio e seco dos seus saltos altos. Minha cabeça latejava. Tentei ligar a televisão, mas o controle estava sem pilha. Olhei e vi sua mala pronta no canto do quarto. Senti o cheiro de comida. Selminha sempre deixava tudo pronto antes de sair para o trabalho. Até ali, tudo bem. O foda era aquela sua mala pronta no canto do quarto. Não costumava ficar sobre o guardarroupa? "O que tá acontecendo? Ainda sâo seis da manhã. E essa mala pronta?" "Estou deixando esta casa. Saindo da tua vida. Não quero mais isto para mim. Chega, Mário Augusto." "Caralho, vamos conversar!" "Não tem mais conversa entee a gente. Saio hoje da tua vida. Agora e já!" Sentei á beira da cama atordoado. Nâo sabia o que pensar. A verdade é que já não nos entendíamos algum tempo, e por cinta disso, Selminha vivia prometendo me deixar. Entrei em pânico. Se Selminha me deixasse, eu estaria fodido. Quem iria me sustentar? Estava desempregado. "Vamos conversar, amor." "Amor uma ova! Vou deixar a comida pronta e o dinheiro do açougue. Depois, tu te vira!" Caminhou até a porta. Havia muita raiva e veneno naquele toktok dos saltos. Eles me mandavam á merda. Sequer olhou para trás. Estava mesmo decidida. Depois que ela fechou duramente a porta na minha cara, arrastando aquela sua mala, é que vim sentir na pele que ela falava mesmo á sério. Selminha partiu. Fiquei grogue uns dias, sem saber o que fazer. Nâo tinha profissão áquela altura de vida. Acho que nunca tive. Queria ser escritor, mas escritor não é uma profissão e não dava dinheiro, além do mais, como ela mesma costumava dizer - literatura não põe comida na mesa. (Minha velha também vivia me dizendo isso). Embora me empenhasse o bastante, no fundo elas tinham razão: os livretos que eu escrevia não ajudavam muito. TODO ARTISTA OU ELE FICA SÓ OU ELE PROGRAMA A MULHER (Ecumênicus me falou certo dia sobre isso e ei fiquei pensando onde exatamente eu encaixaria esta máxima). Passei a beber o dobro do que bebia. Olhava a escuridão da janela e chorava sempre quando ouvia aquela música do filme AEROPORTO 77. Um dia me enchi de ficar enchendo a cara, olhando a escuridão da janela e ouvindo aquela música do AEROPORTO 77 e fui até o açougue mais próximo comprar comida. Foi aí então que o anão entrou na minha vida e tudo mudou... (continua amanhã)