sábado, 29 de janeiro de 2011

PARTE II - QUAL O CONSELHO QUE O SENHOR DARIA A UM ESCRITOR QUE ALMEJA CHEGAR A ACADEMIA DE LETRAS?

O CARA TAVA MORANDO EM OUTRO LUGAR. Na Europa. Dava aulas de literatura em Soborne. Havia escapado do covil dos porcos. Era agora celebrado. Bem merecido. Também gosto do que escreve. Olhei. O lugar já estava abarrotado de gente. Professores, alunos, doutores, leitores, a nata letrada de Manaus. Ou quase. Desconfio dessa gente. Me acomodei por ali no meio deles. Já começava a ficar irritado com tanta formalidade antes do cara começar a falar. Há poucos minutos ficava o Bar Castelinho e eu já começava a ficar com sede. Aí chamaram um poeta chato para declamar um poema longo e chato. Depois de declamar seu poema longo e chato o poeta ficou ali de bla bla blá nostálgico. Aquela gente toda ria e aplaudia. Estavam gostando daquilo, é claro. Eu não. Ficava ali olhando pra aquilo. Como se não bastasse, alguém começou a tocar no violão a porra do Porto de Lenha. Eles chamam por aqui de hino da terra. Se orgulham disso. Não aguento mais ouvir Porto de Lenha. Dia desses comentei sobre isso num encontro literário e alguém disse que eu não tenho amor pelas coisas da terra. É, acho que não tenho mesmo. Foda-se.
Foi então a vez de uma mulher alta e branca, com colares indígenas espalhados pelo pescoço e uma saia indiana – sentada bem ao ladinho do escritor celebrado - começar a falar por quase uma hora acerca de seu trabalho de doutorado sobre o mito na literatura do tal escritor. Tinha um sotaque sulista. Fui fumar um pouco na varanda. Olhar a noite que vinha chegando. Me sentia asfixiado. Fumei um cigarro. Depois outro. Voltei pra lá e a mulher continuava a tagarelar seu doutorado. Comecei a refletir sobre essa gente que faz doutorado acerca da obra de escritores. Parecem cãezinhos fiéis e bajuladores quando estão ao lado dos seus mestres. Eles sacodem negativamente a cabeça e eles também. Eles fazem uma carinha de aprovação e eles também. Eles coçam a fronte e eles também. Fazem um gesto de prece com as mãos e eles também. Esperava ansioso ele coçar os colhões pra ver se ela fazia o mesmo. Mas aí já era demais. Cãeszinhos amestrados é o que são. Comecei a rir sozinho. Olhei ao redor e as pessoas estavam muito sérias. Ainda bem que Álex não viera, pensei. Ia pedir pra sair e não voltar mais.
Depois de muito bla bla blá e enchimento de saco, o tal escritor celebrado começou a falar. E falou divinamente bem. Que timbre. Que domínio. Que autocritica. Um escritor admirável, não resta dúvidas. Falou pausadamente belo, da importância dos clássicos: “Mais valioso ainda é ler primeiro a literatura de nosso tempo, que é enorme. Muito mais valioso, pelo menos, para um escritor, é ler o que lhe cai em mãos, seguir o nariz.” Bobo o que disse, mas sincero, sei lá. Uma hora depois encerrava sua fala com a mesma eloquência com que iniciou. Todos bateram palma. Eu também. Aí começaram as perguntas. Todas idiotas do tipo: “O que levou você a escrever?” “Qual seu processo de criação?” “Qual o conselho que você daria a um jovem escritor?” “Qual a influencia que Flaubert teve na sua literatura?” PUTZ! Esta última Já tinha ouvido uma centena de vezes. Sempre vindo do mesmo cara. Olhei para trás e era justamente ele. Todos os encontros que vou do celebrado escritor sempre encontro o mesmo cara fazendo a mesma pergunta. Já tive até pesadelos. Em um deles, ele se erguia do meio de uma multidão e me perguntava: “Qual a influência que Flaubert teve na sua literatura?” Um dia vou chegar até ele e dizer-lhe o seguinte: “Escuta, meu chapa, por que sempre faz a mesma pergunta? Ou melhor dizendo, por que não deixa o pobre do Flaubert em paz?” Juro que da próxima vez eu lhe direi isso.
A sessão de perguntas não parava. Uma enxurrada. As perguntas aparentemente inteligentes, o escritor aclamado fazia um gesto de aprovação fisionómica, e o seu fiel cãozinho fazia o mesmo. Quando a pergunta era estúpida, ele coçava a testa e o seu fiel cãozinho também. As definitivamente não compreendidas, ele torcia a boca e o seu fiel cãozinho também. Houve uma que extrapolou todas: veio da fileira da frente. O cara perguntou: “Qual o conselho que o senhor daria para um escritor que almeja chegar á academia de letras?” Juro que senti vontade de pular no pescoço do figura. O escritor aclamado fechou bem os olhos como se sentisse muita dor e o seu fiel cãozinho fez o mesmo. Não fiquei pra ouvir a resposta. Abri caminho no meio do povo e me mandei dali.

"eyes in the heat" (Jackson Pollock)
DIAS QUENTES DE VERÃO MANAUARA, subia a Dez de Julho feito a sombra curva e amarga de Jeanne Moreau, embalada por “Prelude to a kiss” do Miles Davis, ou por um “Body and Soul”, do John Coltrane mesmo. Amo Jazz. Álex me acha um cara muito fresco. Sentimental demais. Mas o que essa criaturinha entende por sentimentos? Você vive sua vida inteira ou a metade dela ao lado de alguém e nunca vai saber dos seus reais sentimentos. O SER HUMANO É UMA OSTRA. Findo largando esse putinho e arranjando um homem de verdade. O foda é que estou enamorado dele. Viciado em seu corpo; seu cheiro de flor do campo. Falo dele em outra ocasião. Enfim, era uma tarde dessas quentes de agosto e eu entrei naquele Solar para ver como andava a venda dos meus livros. Faço isso pelo menos uma vez na semana desde que publiquei minha mais recente novela. A velha ronda pelas bancas de revistas e livrarias do centro de Manaus com alguma espécie de esperança besta na alma. Apesar de ver meus livros publicados, sou ainda impublicável. O fato é que com o tempo eu vou me sentindo um idiota. Desacreditado. Alguém que ninguém leva muito á sério por aqui. O grande inseto esmagado do Gregor Sansa. “Ah pobrezinho dele...” ÁLEX EM MEU QUARTO ME CURANDO MAIS UMA VEZ DAS MINHAS BEBEDEIRAS VIOLENTAS. “Você precisa se olhar no espelho, paizinho. Tá um bagaço.” Da sua maneira infantil, ele me encoraja. E assim, vai crescendo ao meu lado. Já disse que falo dele em outra ocasião. Pois bem. A dona do lugar - uma senhora de aparência arrogante e com a porra de um sotaque mineiro - é quem sempre me atende:
“Pois não?”
“Vim ver como estão se saindo os meus livros.” Fez uma cara de poucos amigos e disse:
“Ah, o senhor sabe como é, literatura amazonense não vende. O senhor teima em deixar eles aí. Eu lhe avisei.” Respirei fundo. Lá fora um calorzão daqueles. Verão escaldante nos trópicos.
“Não estou vendo eles na prateleira, minha senhora.”
“Qual é o livro, moço?” Dei uma olhadela em volta e os localizei escondidos no canto da prateleira:
“São aqueles espremidos bem ali no canto.” Ela se levantou com um ar irritado e cansado, caminhou até eles e os colocou visivelmente expostos. Contei-os em silencio. Não havia saído nenhum. Seis meses ali expostos e não havia saído nenhum. Será que é pedir muito? “Não adianta, moço, não vende. Ficam aí mofando.” Aí ela me mostrou um outro livro: “Olhe este aqui: Está aqui há mais tempo que o seu. É de um escritor amazonense, mas não vende.” E atirou grossamente o livro sobre a mesa. Fez bum! Tinha um belo acabamento. Peguei-o. Dei uma olhada na orelha. Era sobre a passagem de Chê na Amazonia. Um livro biográfico. Parecia interessante.
“Por que a senhora acha que não vende?”
“Ninguém lê escritores amazonenses. São todos amaldiçoados.”
Senti uma puta vontade de esmurrar a cara enrugada daquela velha. Foda-se o estatuto do idoso. Mas contive a cólera. Ou quase:
“NÃO, NÃO É ISSO NÃO, MINHA SENHORA, O FATO É QUE EXISTEM PESSOAS ASSIM COMO A SENHORA, IGNORANTES, ILETRADAS, EU NÃO SEI COMO A SENHORA TRABALHA COM LIVROS, EU FRANCAMENTE NÃO SEI, A SENHORA DEVIA TÁ FAZENDO OUTRA COISA, SEI LÁ, SABE, MAS NÃO CUIDANDO DE UMA LIVRARIA, TUDO MENOS CUIDANDO DE UMA LIVRARIA, A SENHORA É ALGUMA LOUCA? POR QUE NÃO VOLTA PRA PORRA DA SUA TERRA SUA VELHA MERCENÁRIA DE MERDA!!”
É, eu havia de fato explodido mesmo. Rodado a baiana, como dizem as bichas.
“Saia daqui ou eu chamo a polícia!” Berrou ela.
Peguei os meus livros e caí fora. Ela gritava da porta: “SEU GROSSO! ESTÚPIDO! SE APARECER POR AQUI DE NOVO EU CHAMO A POLÍCIA...”
E É DESSA FORMA QUE SÃO TRATADOS OS ESCRITORES AQUI NESSA TERRA.
Parei no Lusitano e pedi uma cerveja.
“O que aprontaste dessa vez, Gajo?” Perguntou o português. A toalhinha azul sobre o ombro.
“Aquela velha, seu Orlando, ela é doida. Me veja uma cerveja urgente.” Ele foi apanhar a cerveja. Os sinos da São Sebastião começaram a tocar. Aquela hora bem poderia ser o papagaio metamorfoseado no Frei Fugêncio. Só mesmo os contos de Félix para me alegrar. A cerveja veio. Entrou leve goela abaixo. A DOCE E VELHA ANESTESIA DOS DEUSES. O velho Monumento á Abertura dos Portos. Uma criança abestalhada dando milho aos pombos. Uns garotos adoráveis atravessando a praça. A abóboda boba do velho teatro bobo. E ao meu lado, um escriturário do banco afrouxando um pouco a gravata e tomando em seguida uma golada de sua cerveja. Leio em seu tabloide. Letras bem garrafais:
“PEDREIRO ESTÁ ALOJADO COM FLECHA DENTRO DA SUA CABEÇA.” Essa fodeu. O pior que vende. Tomei mais um gole da minha cerveja. Olhei as horas. Aqui o tempo e o calor te devoram num segundo. Quando não, te deixam abestalhado. Como não havia muito o que fazer naquela tarde quente de agosto, terminei minha cerveja e me dirigi até o Cauá. Havia uma palestra de um escritor renomado de Manaus. Não tinha mesmo o que perder. Tinha?

continua...
w.kooning - expressionismo abstrata

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

O ÚLTIMO TIRO - PARTE III

III – NA PRESENÇA DE ZEUS AS DORES DOS OUTROS DEUSES ERAM PEQUENAS

"Netuno foi chamado ás pressas á presença de Zeus, que o colocou sentado diante de um grande tabuleiro de xadrez de cristal líquido, mostrando a ele o quão a vida é um jogo, e as pedras – quando erroneamente movimentadas – podem causar dilúvio nos olhos e no coração. Netuno ainda possuía os olhos vermelhos de choro e de vingança. Trovões rimbombavam furiosos no espaço do céu, fazendo tremer os pilares do grande templo. Na presença de Zeus, as dores dos outros deuses eram pequenas. Ele portanto, disse:
“Cedi-lhe a mortalidade e movestes as pedras erradas.”
“Foi o amor, Zeus, o amor deles é profundo demais.”
“Mas não vives nas profundezas?”
“A profundeza deles é mais profunda.”
“A sua é que é, e não a deles. Queres o castigo que dei a Atlas?”
“Não! O universo é pesado demais.”
“Então aprendes a mover corretamente as pedras do tabuleiro.”
Aí o celular vibrou sobre a mesa de metal e eu atendi. De novo interrompido. Sou sempre interrompido. Minhas divagações, meditações, minha paz, minhas linhas... mas daquela vez foi diferente. A voz do outro lado era feminina e doce e eu a conhecia tão bem que demorei a acreditar:
_Mário? oi, é a Clarice!
Não acreditei mesmo. Ajeite-me melhor na cadeira.
_C-Clarice? _ A maldita gagueira
_Surpreso?
_Pô, muito. (Se vocês pudessem ver o meu sorriso; minha alma amarela saltitando de alegria.)
_Soube do acidente. Como vai o braço?
_A mão. Foi a mão.
_Como vai a mão?
_No frio ela dói um pouco.
_Vai sarar.
_Não sara não.
_ Não faça drama, Mário. Escreva.
_Não consigo escrever quando estou sentindo dor. A dor atrapalha.
_Dramático como sempre...
Ai fez um pouco de silêncio.
_Quanto tempo depois daquele almoço. _Eu disse.
_ Usei as pétalas como marcador de livros.
_As rosas eram suas.
_Sei...
Outro silêncio.
_E você? O que faz da vida? Perguntei.
_Estou indo pra São Gabriel da Cachoeira. Residência médica.
Senti aquela alfinetada no peito.
_Saudades de nossas tardes...
_Também.
_Quando voltas?
_Um ano de residência.
_E o livro do Garcia Marquez, lestes?
_Adorei.
_Estou aprendendo a ter a paciência de Florentina Ariza.
_Literatura, Mário. Ninguém espera tanto.
_Achas mesmo?
_Acho.
_Espero você voltar.
_Um ano apenas. Nada se compara a 53 anos, 7 meses e 11 dias. Não foi o tempo que Florentino Ariza esperou por Fermina Daza?
_Espero você a bilhões de anos, esqueceu?
Risos do outro lado, e um outro silêncio.
_Estás onde? _Perguntou ela.
_Em um bar.
_Então estás bem. Preciso desligar agora. Beijos querido!
_Quando me ligas de novo? _Quis saber apressado.
_Um dia desses... eu ligo.
E desligou. Olhei para um céu enlutado e não vi estrelas. Nenhuma. Mas elas estavam lá, em algum lugar, escondidas. Rindo. Estrelas não choram. Um vento frio e forte soprava, enfiando seus dedos laminados na minha carne. O aparelho ainda tremia nas minhas mãos. Olhei para os lados. Aquela hora ainda havia pouca gente no Castelo e eu me senti imensamente compensado com o telefonema de Clarice. Segundos de completa felicidade. Era tudo de que eu mais precisava naquele momento. Se existia uma mulher que haveria de me causar alegria súbita na alma, essa mulher era Clarice. Presente nos momentos de fraturas. Expostas ou não. Um tiro. É. Clarice é como um tiro que atravessa a gente e não se aloja em canto algum da imperfeição do espírito. Fiz subir a fumaça do meu cachimbo e respirei bem fundo o ar daquela noite fria. E continuei rascunhando:

"As pedras ali dispostas no imenso tabuleiro de cristal líquido mostravam nítida vantagem a Zeus que, naquele instante, movia sua torre para a casa 05, dando-lhe um mate ao rei. Netuno ficou um longo instante calado. E finalmente disse:
“Procurei achar as variantes certas que justificassem a tentativa de traição e armadilha, mas não consegui.” Lamentou-se olhando a jogada. O tridente entristecido descansava ao seu lado.
“O amor tem um efeito sedativo e causa cegueira também.” Disse Zeus enfastiado.
“Achei que o certo seria jogar com os peões, mas decidi calcular as variantes.” Justificou-se Netuno.
“Deixou a partida ser levada pelas ondas. Erro crasso.”
Netuno levantou os olhos vermelhos.
“E quanto Hérbaro e Cécila, meu Zeus?”
“Serão castigados, ambos. Agora vai e não vaciles mais...”
Foi aí então que começou a cair pingos de dores secretas do céu e eu cambaleei para dentro do Castelo para junto dos outros heróis...

Para Mariza Marques...


em breve "O HOMEM QUE PERDEU O CU".

(novela)

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

O ÚLTIMO TIRO - PARTE II

A VIDA PROSSEGUE MOSTRANDO SUA GRANDE LÍNGUA

Segui calado e pensativo, preso ao frescor do ventre de uma tarde aprazível de sábado. Voltava a ficar solteiro e só. Sobrevivente de um verdadeiro tornado que me deixara com alguns arranhões no peito e na alma -além de uma mão quebrada. Mas a vida prossegue mostrando sua grande língua. As coisas voltavam a girar bem devagar ao meu redor: os carros, as vidas, as aves no céu. A Avenida Djalma Batista que se estendia infinita diante de meus olhos. Tudo tão devagar. A cidade ainda me soa belamente estranha. Parece estar sempre acordando de um porre homérico ou de uma hecatombe nuclear. Tudo ainda se regenerando. Um imenso estilhaço de coisas pairando no ar, se espalhando na terra. Via-me agora num bosque que mais parecia um bosque de mortos. Este nome seria o mais apropriado ao lugar: “Bosque dos Mortos”. Andei entre os mortos com a minha doce arrogância e parei diante de um chafariz e ele me fez ficar inebriadamente triste e revoltado. Quem eles pensam que enganam construindo tudo isso aqui? Eu, por exemplo, não quero enganar ninguém. Nem a mim mesmo porque já sou feito de enganos. Mas eles não tem esse direito. Estão transformando essa cidade num grande hospital, e os lugares recreativos, em centros reabilitadores.
Parei em um Café que serviam cervejas e pedi uma. Não pensem que a vida é perfeita, porque eu tinha no bolso os fósforos Paraná que são absurdamente vagabundos e me fizeram pagar um mico ao tentar, a muito custo, acender o meu cachimbo. Uma garçonete com cara de enfermeira, olhando aquilo, veio ao meu socorro:
_O senhor não acha melhor um isqueiro?
_Verdade. É bem mais prático. Quanto custa?
_Tome este. _Olhei para ela e ela parecia cansada. Acendi o cachimbo e uma fumaça densa e compacta subiu. E se espalhou. Um muro branco e sólido, oscilante como um sonho que me separava das outras pessoas. O cachimbo é mesmo um troço interessante. Ele concentra a ação da alma transformando essa ação numa ação morna. Do outro lado do muro, apenas sombras. Espectros de carne ocupando o mesmo espaço oco de suas vidas. Sentada no outro extremo desse espaço oco, havia uma senhora de meia idade a fumar elegantemente uma cigarrilha e ela era uma sombra empertigada e solitária congelada no tempo, lembrando um quadro triste de Manet. Passei por ela me dirigindo ao banheiro e ela sequer se moveu. Também construía seu muro oscilante de densa névoa e aquilo me adoçou um pouco a alma porque eu não era ali o único construtor de muros.
Ao voltar a mesa, fui recepcionado por um sátiro que brincava num ornamento de pedras sob a luz fosca de um abajur. Depois de capturar os insetinhos que rodopiavam em torno da luz, o sátiro mostrava ligeiramente sua língua atrevida e zombeteira. Cogitei que fizesse parte da ornamentação do lugar – uma vez que me encontrava num bosque – e portanto -tomado de admiração pela única coisa que o lugar me proporcionava de alegre, chamei erroneamente a atenção da garçonete com cara de enfermeira e perguntei a ela:
_Ele faz parte da decoração, senhorita?
_Quem, moço?
_O sapinho ali.
_Ai moço, onde?
_Ali, nas pedras.
O sapinho agora mostrava a língua para nós dois.
_Credo, não! Jaime! Jaime! Tem um sapo ali.
_É só um sapinho, senhorita. _Tentei acalmá-la. _Afinal, isto não é um bosque?
Jaime apareceu. Era um mulato alto e forte e ele segurava uma vassoura. Mas Jaime tinha uma alma de anfíbio porque riu e disse:
_É só um sapinho, sua boba. Pensei que fosse um sapo de verdade. _ E enfiou-se lá para dentro com sua vassoura, balançando a cabeça. O sapinho cansou da cena e partiu. E foi assim, que de um modo estranho e repentino, fui acometido de ataques de risos. Ri baixinho. Já era um começo de uma noite de sábado e eu tinha a certeza quase nômade que aquela seria uma noite longa e cheia de revelações. Olhei um instante para a senhora no outro extremo da mesa e ela ainda permanecia elegantemente congelada com sua piteira acesa. E era só o começo de uma noite de sábado. E eu desandei a rir. E depois, parti.


continua...

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

A P R E S E N T A Ç Ã O - O ÚLTIMO TIRO

O escritor e sua existência, entre aquilo que chamamos de “mundo real” e o mundo interior. Essa é a dimensão de O Último Tiro, de Márcio Santana. Um conto que materializa de forma perfeita toda a dinâmica da vida daqueles que são “amaldiçoados” pela escrita. A dupla dimensão entre as vicissitudes cotidianas de um homem comum e sua transcendente viagem pela imaginação _que alcança patamares mitológicos, olímpicos e sublima sua existência, por vezes frustrante.
Matizado com pinceladas autobiográficas, O Último Tiro é um texto profundo, que gera as mais diversas emoções no leitor e o induz a refletir sobre a fugacidade da condição humana.


Marcelo Farias, Manaus, 11 de janeiro de 2011.

O Ú L T I M O T I R O

PARTE I - A ARTE DO GALANTEIO

"Netuno, traído e abandonado por sua companheira Cécila, que fugira com Hérbaro, o escorpião, numa atitude inumanamente inconcebível aos olhos de Zeus - fez cair, Netuno, sobre a provinciazinha, durante infindáveis dias, lágrimas finas de morte que chicoteavam e ricocheteavam fazendo tremeluzir os lampiões a gás de tons fúnebres e apastelados que se estendiam enforcados por toda a extensão da principal avenida da cidade, onde, á noite, abrigam-se e embriagam-se os heróis em seus castelos e casarões..."
Toma-lhe! A desmitologização. Aí se aproximou uma mulher vestindo preto, portando a droga de um crachá e um radio transmissor e ela me interrompeu dizendo:
_ Não pode fumar aqui não, senhor.
_ Ah, não?
_ Não.
_ Nem cachimbo? É só um cachimbo.
É bom lembrar aos senhores que eu me achava naquela tarde de sábado num shopping center e fumava meu cachimbo novo, enquanto aguardava a sessão das quatro e vinte começar.
_ Há um espaço aqui ao lado só para fumantes. Mas eu não aconselho o senhor a ir, agora não, pois restam poucos minutos para o início da sessão. _Falou polidamente. Concordei apagando meu cachimbo. Fechei meu caderninho de notas, paguei a água e levantei-me, dirigindo-me em seguida á sala de projeção. Confesso a vocês que não suportei ficar vinte minutos ali dentro. O filme era uma porcaria: gravidez na adolescência e autoafirmação de uma geração comedores de cheesburgers, além, é claro, de doses homeopáticas de moralismo antiaborto. Ah, vão enganar outro. Deixei a sala e fiquei andando a esmo um tempo, perdido, olhando o preço das coisas nas vitrines. Entrei numa tabacaria e chequei o preço de alguns tabacos. Na verdade, queria mesmo tornar a ver a atendente com cara de Helen Hunt. A mesma do filme As good as it gets, em que se encanta com Jack Nicholson e o torna mais humano. Veio vindo ela em minha direção, com leve sorriso em seus lábios e disse:
_ Boa tarde!
_ Boa tarde! _Olhou-me com certa curiosidade e indagou:
_ O senhor não esteve aqui da outra vez comprando um cachimbo?
_ Sim, estive.
_ E o que foi isso no braço?
_ Ah, sim, uma cadeirada, senhorita. _ Como mentir para um anjo daqueles.
_Cadeirada?
_Sim, uma cadeirada.
_E quem foi esse mau?
_O canalha do amante da minha ex-mulher, com perdão da palavra.
_E o senhor sabia que estava sendo traído?
_Aquela velha história: o marido é o ultimo que sabe. Eu vagamente desconfiava.
_Errado e ainda fez isso com o senhor?
_Pois é... é a vida.
Sorriu. Era branquinha e tinha um sorriso lindo. Não sou racista, podia ser negra, parda, ruiva, morena, mas quero me ater aos fatos, pois que era branca sim e redimiria todos os meus pecados, além do mais, tinha a cara e o sorriso da Helen Hunt.
_E o que o senhor vai levar hoje?
_Você comigo para tomarmos juntos um bom chopp e apreciarmos esta tarde tão agradável que nos brinda lá fora com seu frescor vesperal. _Tinha de arriscar, ora. Sorriu novamente um sorriso encabulado e respondeu:
_Hoje não posso.
_Ora, mais por quê? Que horas costuma largar?
_Hoje, bem tarde, as onze.
_Hummm... que tal amanhã?
_Também não dá. _ Falávamos agora baixinhos como dois pequenos amantes a conspirar uma felicidade mútua. Eu fingia interesse pelos tabacos nas prateleiras. Mas estava mesmo era imaginando os pelinhos louros de sua vulva rosadinha; a ternura dos lábios vaginais em contato com a minha língua, causando um jorro abissal do néctar dadivoso que compensa toda a existência miseravelmente humana do homem. O mais vil de todos. O mais cachorro. O mais santo. O mais tolo. Também olhei para o volume de suas nádegas sob a saia azul de linho e era um traseiro nem muito grande nem muito pequeno, diria que médio, proporcional ao seu corpinho e também os peitinhos, os tornozelinhos, tudo tão delicado e discretamente espetacular que encaixaríamos perfeito e teríamos lindos filhotes, e você aí do outro lado do papel com certeza vai dizer, machista! Só vê isso na mulher? Não, porra, também vejo o lado humano que justifica sua inteligência, como ela bem demonstrou no início ao preocupar-se com a minha mão quebrada e ao ouvir com interesse a minha história. Então ela notou minha tristeza de cachorro e me disse:
_Semana que vem chegarão uns tabacos novos, tailandeses, cujo aroma é bem gostoso. Por que não passa aqui na quarta para conferir? _Ahh, as mulheres, docemente ardilosas. Sabem mesmo jogar. Meus olhos, é claro, iluminaram.
_São bons mesmo?
_Asseguro ao senhor que sim.
_Então estarei aqui na quarta.
_Vou esperar.
Havia nela, sem dúvida, um invencível encanto que me impelia ao exercício do galanteio. Por isso, antes de sair, ainda lhe disse:
_Alguém já lhe falou que você se parece muito com a Helen Hunt?
_Quem, moço?
_Helen Hunt. Uma atriz americana. Ela fez “Melhor impossível”, com Jack Nicholson. _ Fez que não sabia torcendo o narizinho afilado. Tentei lembrar-lhe de um filmezinho comercial e chato:
_Tornado! Você assistiu Tornado?
_Aquele do furacão que destrói tudo? _Os olhinhos dela brilharam.
_Este mesmo!
_É aquela?
_A própria. Mas precisa mesmo é ver Melhor impossível. Ela está maravilhosa e ela se parece muito com você. Até o sorriso, veja que coisa.
_Sério? Vou acreditar, hein?
E então nos despedimos. Talvez eu tenha cansado o leitor com essa passagem, mas eu precisava falar dela porque acabei voltando lá outro dia fazendo valer o meu intento. Mas isso já é uma outra história.
Seguimos?

continua amanhã

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

A MORTE DO CURIRIM


Como dizia minha vó, “vaso ruim não quebra.” Não sei bem se o Curirim é um vaso bom ou ruim de quebrar, levando em conta que, todos os freqüentadores do Bar Castelinho são vasos ruins de quebrarem, e eu, é claro, não fujo à regra. O fato é que o desfecho da última sexta feira culminou com o episódio tragicômico envolvendo o nosso amigo Curirim que tombou desfalecido entre o Castelinho e o Bar Safari. Estava feita a celeuma. Deixei o balcão do bar e me aproximei um pouco pra ver. Todos ali em volta de seu corpo pequeno e franzino que sangrava á cântaros. Entre os curiosos, haviam também alguns meganhas fardados. O cara ali morrendo e nada da porra do SAMU. Ouvi alguém dizer: “Porra, esse tá fodido.” Pelo andar da carruagem e da falta de assistência médica mais eficiente em nosso estado, o cara realmente tava fodido. Se fosse o filho de um bacana que tivesse morrendo fodido daquele jeito, com certeza o empenho seria melhor. Mas o cara era o Curirim. E quem é o Curirim? De que pântano da vida ele veio? Com certeza, mais um número na estatística. Voltei pro balcão do Castelo pra terminar minha cerveja, ouvir “I wish you are here”, do Pink Floyd na vitrolinha, e quem sabe torcer pro cara se safar dessa. Toda morte tem um peso. Morrer não é legal. A morte é o susto da vida. Fiquei ali filosofando essas coisas estranhas. Paguei a conta e caí fora, rumo ao baixo meretrício.
No dia seguinte recebi a visita da cantora Sâmila, que descalça e com uma puta cara de ressaca, veio bater á minha porta as dez daquela manhã. “Porra, Márcio, tô cansada e com muita fome.” “Entra aí, vai.” Entrou, tomou um banho e tomou de assalto a cozinha. Entre uma colherada e outra, conversamos sobre a noite passada. “Soube o que houve com o Curirim, ontem, não soube?” Perguntou ela. “Pois é, será que morreu?” “Cara, foram sete facadas no peito.” “Porra, sete facadas? Esse já era.” “Te esperou.”
Dormimos a tarde toda, e por volta das seis, voltamos ao Castelinho para curarmos nossa ressaca e saber das notícias. As mesmas carinhas de sempre, com exceção de alguns EMOS que eu nunca tinha visto na vida. As figuras bebiam vinho, jogavam sinuca e arranhavam um violão, cantando as músicas tristes do Legião. Bocejei e ela também. Mais tarde ela sairia par vender seus CDs e eu os meus livretos. Aí então, ela virou-se pro Cabecinha que bebia na mesa ao lado e perguntou: “E aí Cabecinha, onde está sendo velado o Curirim?” “O Curirim? Porra, o cara não morreu não. O filha da puta me apareceu hoje as sete da manhã batendo na minha porta com uma garrafinha de corote e me pedindo roupas novas.” Nos olhamos surpresos e quase rindo. “ Mas não foram sete facadas?” Perguntei. “Que nada, só umas pauladazinhas na cabeça. Essa gente tem a mania de matar os outros antes do tempo.”
Não sei cara, conheço bem pouco o Curirim. Não importa o que ele andou aprontando. Só lembro que um dia ele chegou uma única vez junto de mim no balcão do Castelinho e me pediu pra pagar uma cachacinha. Foi a única vez que fizemos contato. Se ele vivia aprontando ou não, isso não é problema meu. O cara tava vivo e eu de certa forma me senti aliviado. A cantora ao meu lado, também, com certeza. A vida é mesmo engraçada. Dessa vez quem levou o susto foi a morte, e não a vida.
Erguemos nossos copos e eu pedi outra cerveja.

crônica publicada no fanzine AMPULHETA

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

FINAL - A MELA É O SUBSTITUTO DA MERDA

Trata-se de um matadouro. Um matadouro excessivamente pequeno, sujo e triste. Um matadouro. "Deixa que eu faço. Tem seda?"" Uma cama de concreto fria e tumular faz-me lembrar um daqueles jazigos do cemitério São João Batista onde está enterrado meu irmão suicida. "Ah, deixa, tenho uma aqui. Me dá o soquete!" Um pouco a esquerda há uma única janela hermeticamente lacrada com tábuas de madeira e jornais velhos. "A mela é o substituto da merda. Fogo?" Um cheiro de sêmem e urina vencida. "A mela é o substituto da merda." "Dois pega! Não deixa apagar!" Dou conta da miséria em que me encontro. A miséria gerou o homem. Moldou-o á sua forma e semelhança. Deu-lhe um caráter e uma substancia limosa. Cartilagem, ossos, vasos, rins, um coração de calcário e um espírito emporcalhado. Eis o arcabouço do homem. Eis o arcabouço da miséria. "Se liga aí, passa a goma! Passa a goma!"
Sento-me sobre a cama fria de concreto. Minhas hemorróidas tartamudeiam. "Perdi meus dentes da frente. Todos do juízo. Não foi culpa da mela não, foi do filho da puta que me arrancou todos eles com um só murro. Sempre cobram da gente aquilo que não podemos dar, não é professor? Tem cara é de professor..." Dá um pau no bagulho, faz uma cara de viciada e diz: "Mostra o pau porfessor, quero sentir ele todinho dentro da minha buceta." Tenta abrir minha braguilha. Começo a ver tudo rodando. Tudo encolhendo. É o efeito do conhaque com a porra da mela. "Mostra esse caralho, porra!" "Han?" "Mostra esse caralho, porra!" Afasto sua mão e tento dizer-lhe amigavelmente que daquele jeito não rola. Acusa-me de veado. Começo a sentir medo. É quando uma lâmina fria e pontiaguda eu vejo saltar de dentro de uma pequena estrutura de aço e espetar de leve minha jugular. Minhas hemorróidas se calam. Tudo se cala.
"Cadê a carteira?"
"Faz isso não."
"A carteira, porra!"
"No bolso da calça!" Fico um tempo em silencio enquanto ela vasculha os bolsos da calça olhando fundo nos meus olhos. Seus olhinhos pequenos e brilhantes de tarântula. Tento manter a calma na hora em que a morte se desespera. A morte tem pavor da própria morte. A vida sempre foi uma mentira. A morte sim, áspera, fria e verdadeira. Raspa-me tudo que há na carteira sem que me sobre um único centavo pro conhaque. Então, okey, digo ironicamente a mim mesmo, deitando-me sobre a cama de concreto fria e tumular e, apesar de minhas reflexões que agora se lançam na vacuidade de minha mente gravemente ferida - acerca da discrepância entre vida e morte -ainda levo uma fração de tempo para aceitar que estou sendo ingenuamente roubado. Ainda sou capaz de sentir a lâmina fria em minha jugular e os olhinhos dela - escuros e brilhantes de tarântula - olhando para mim sem um pingo de remorso, decência ou humanidade enqjuanto revira ás pressas os bolsos de minha calça á cata de algum dinheiro. Depois de tudo, francamente não sei ao certo se agradeço a ela por continuar vivo. Ouço agora ela assobiar alegrizinha enquanto desce as escadas de cimento daquele hotel. Acabo esquecendo de perguntar-lhe o nome. O meu é Mário. Mário Augusto. Prazer.
Muito cansado, deito-me lado, assim, em posição de feto.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

I - PARTE - O UNIVERSO É UM GRANDE MOEDOR DE CARNE NA FASE INDIGESTA DE DEUS.

Ahh, as putas, não dou muita sorte comn elas não, e as minhas noites vadiamente sujas estão se tornando cada vez mais amargas...
Desço levemente trôpego a Lobo D'Almada em direção á Praça da Matriz. Ainda é uma da manhã e a noite amordaçada pelo silêncio é entrecortada apenas pelos TOKS TOKS surdos-secos dos saltos altos dos travecos que fazem ponto pelas esquinas, acordando da vida, a morte.
A lua é roxa. Macilenta. Doce-fria. Defunta sonhos. Penso acidentalmente na frase de Spinosa: "O homem é seu destino." Sim. E tudo neste homem são verdades e mentiras. Verdade e mentira caminham juntas. São juntas de uma mesma mão. Não pode existir a verdade sem a mentira. Uma é premissa da outra e viceversa. O universo é um grande moedor de carne na fase indigesta de Deus. Estamos dentro do grande moedor de carne que moe moe e moe os intestinos do homem, a mentgira da carne, a verdade do espírito. Verdade e mentira caminham juntas. São juntas de uma mesma mão. O homem é seu próprio destino.
Vou filosofando essas coisas estranhas enquanto acerto meus passos levetrôpegos em direção ao anfiteatro da morte. Vou abraçá-la. Ouvir o estalido de seus ossos. Olhar sua cárie. Comer seu câncer. Um traveco se aproxima e me diz com voz sedutora: "vamos faqzer um programinha, amor?" O traveco é bastante alto e o seu queixo é pontiagudo como as lâminas de seusn saltos. Faço um gesto negativo e amigável com a mão e sigo em frente. Alguns deles se valem de sua altura e massa muscular para roubar os transeuntes feridos, mas este não me causa mal algum. Mas é preciso ter sempre cuidado: controlar o pau que causa a ereção da alma.
Ao final da rua dobro a direita e sigo fazendo o contorno pela XV de novembro. E é exatamente ali, escorada ao muro da Biblioteca Arthur Reis, bem na entrada do Suadouro - na então conhecida Itamaracá - que uma puta em completo desmazelo da vida, me chama bastante atenção. A tipa fuma sossegadamente um cigarro e seus olhos são pequenos e brilhantes como as de uma tarântula. Endireito meus passos e vou ao seu encontro. É um pouco mais baixa e graciosa. Quase um milagre. Baixa ou alta. Bonita ou feia. Suja ou limpa. Gorda ou tísica. Branca ou negra, a esta altura já sinto o mecanismo da solidão corroendo por dentro. Putas são girassóis girando dentro de nossa amargura de muletas. Trato de anotar esta frase que me vem á cabeça: Putas são girassóis girando dentro de nossa amargura de muletas...
"O que faz por aqui uma hora dessas, bebê?" Pergunta ela.
"Estou atrás do amor de uma puta." Falo desse modo porque já me encontro bêbado e mais gaiato. Ela desgruda-se da parede rugosa do prédio e me examina dosm pés á cabeça com a sedução nos olhos, orgasmo nos lábios e a falta de respeito que só as putas sabem demonstrar. Olho bem pra ela que parece ter saído de um quadro machucado da vida. A vida é um mosaico de pancadas. Mas uma frase que me risca a mente e que também trato logo de anotar em meu bloquinho. Olha aquilo curiosa e pergunta:
"Você é pesquisador?"
"Pode ser. Logo ali tem um bar. Pago-lhe uma dose de conhaque."
"Não bebo conhaque."
"Uma cerveja então."
Comncorda e vamos ao bar que fica na esquina da XV com a Mauá.

C

conto: SUADOURO

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

parte II - putas são girassóis girando dentro de nossa amargura de muletas

R

ua Mauá. Ou beco Mauá. Ou viela Mauá. Ou então Avenida Mauá. Quem se importa? Certas vias públicas fazem-me lembrar um grande reto cancerígeno expelindo cotidianamente sua larva de pus e seres microbiantes. Mauá é um exemplo disso: uma pequena artéria escondidinha no reto sujo de minha cidade. E caminhar sobre ela a qualquer hora do dia ou da noite, é caminhar sobre o dorso de uma mariposa que se debate, que agoniza, mas que teimosamente ainda expele seu veneno: o veneno do tempo da morte. Ela segue apressada. Não a morte. Calma. A prostitutazinha. Eu não tenho pressa. Já disse que nao tenho? Seguir ou não é uma questão de escolha. Nada na vida é uma imposição do destino. Tudo é uma escolha. A escolha está entre o bem e o mal. Entre a raiz e o nervo. Entre o sujo e o limpo. Entre a vida e a morte. Escolhe-se morrer e não nascer. A morte é ajustável. A vida, uma forma egoísta de adequação. O que buscamos no fundo é uma forma egoísta de se adequar e nada mais. Olho agora minhas mãos no escuro. Veias saltam das costas das minhas mãos. Esgotos gorgolejam. Sombras monstruosas de ratos escapelados correm para as galerias. Odores fétidos desprendem-se das paredes do tempo. E o tempo é este VELHO que me olha passar e se masturba. "Vem ou não vem?" A voz dela interrompe-me estes meus pensamentos que nunca vão se completar. Sou uma ponte sobre este abismo que não se completa jamais.

"Não sinto firmeza onde estou."Digo a ela quando lá chegamos.

do conto: "SUADOURO"

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

ontem recebi as visitas dos amigos Max Caracol e do poeta Rojjefferson Moraes. um dia agradável na companhia desses dois caras. Rojjefferson ainda peleja com a publicação do seu "POESIA-CRÔNICA", e o Max veio trazer-me um texto novo chamado "PRECISA-SE DE GATUNOS VIRTUOSOS - UMA FUSILAGEM EM 03 PARTES" - que ele pretende publicar no zine "A GASTRITE" (nossa mais nova invenção). ele também veio reacender a idéia de publicarmos a oitava edição da Revista Sirrose. Disse-me que esteve em Paricatuba com Adriano Furtado discutindo uma possivel retomada da revista ainda para o mês de março. me pareceu muito entusiasmado mesmo o Max. ao contrário de mim que já havia deixado muito claro alguns meses atrás que não daria mais pé continuarmos com a idéia da revista. e na verdade não vejo razão alguma de continuarmos com ela. mas isso é apenas uma decisão particular minha o que invalida ou não a possibilidade que continuarmos com ela. afinal de contas, a revista não me pertence e não sou eu que determino se ela deve continuar existindo ou não. se os colegas acham conveniente seguirmos com as edições, eu até me comprometo em ajudar enviando textos e participando dos eventos. não mais como antes em que me empenhava de corpo e alma correndo atrás de patrocinadores que nos ajudasse na compra da tinta e do papel da encadernação, colhendo e digitando textos dos camaradas, pressionando a gráfica na agilização da impressão da revista, organizando eventos, etc. tracei outras metas literárias para minha vida. há este romance que se tornou uma obsessão e que preciso terminar de escrevê-lo, além do quê, preciso pensar também o que farei de agora em diante da minha vida como escritor. o tempo é foda com a gente e eu já tenho 41 anos de idade. o mundo lá fora nem sequer sabe que eu existo. e cara, embora não pareça, eu tenho ambição, tenho sim, de um dia ser reconhecido como escritor.
as visitas de Max e do Rojjefferson regado a cerveja e alguns "peguinhas"de preto, me valeram a tarde e me deixaram de certa forma entusiasmado. e compensado. e vivo também. e com mais coragem. sim, com mais coragem sim, de fazer algo por mim, apenas por mim...
segunda feira - 10.01.2011

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011


(...) o bar era flácido. mas a vida também é flácida. e o tempo é flácido. e o universo todo ele é uma flacidez. um sujeito tosco e flácido nos serviu as bebidas: uma dose de conhaque negro pra mim e uma cerveja pra ela. dei logo uma talagada no meu conhaque e o líquido negro desceu rasgando por dentro. pedi outra dose e ela veio. com três doses de conhaque na alma e eu já estava naquele modelo. comecei então a dançar, uma dança estranha e descompassada que nada tinha a ver com a música sórdida que tocava. eu queria estar feliz e não me importava os motivos.
_ voce fuma também?" ela perguntou.
_ depende o quê? chegou bem perto de mim e sussurrou com uma voz amaciante de carne. _Mel. olhei para os lados. um corpo celestialmente imundo e pesado de homem desabou pesadamente sobre o balcão ensebado.
_nada contra.
apertou minhas bochechas flácidas e disse:
_vamos queimar um, então.
_onde?
_lá atrás, no estacionamento.
paguei mais uma dose de conhaque e acompanhei ela. queria estar com alguém custasse o que custasse. subimos então uma Mauá estreita e deserta. passamos pelos restos de uma puta que soluçava escorada em um muro. a solidão nasce dos charcos. contem em si o dialeto mais nobre da dor humana. é, eu havia pensado naquilo enquanto caminhávamos...

trecho do conto: "Suadouro"

terça-feira, 4 de janeiro de 2011


Comecei o ano de 2011 indo a um concerto de flautas no CAUA. As operetas de Brahms, Bizet e Bach me machucaram bem a alma. Depois - é claro - fui ao Bar Castelinho rever alguns amigos de copo. Não consegui digerir legal a cerveja por senti-la terrivelmente quente. As pessoas que me cumprimentavam conseguiam se tornar insuportavelmente desnecessárias. Pensei em ir mais cedo para casa. Agora que estou morando longe, minha rotina mudou consideravelmente. Tornei-me um boemio diurno. O que não deixa de ser interessante. Tentei falar tolamente com alguem sobre o romance novo que estou escrevendo e ele resumiu tudo: "FraNZ é você: Homossexual e jogador. Sua noção de tempo é imperfeita." As coisas iam me irritando a medida que o tempo ia me engolindo. Fiquei um pouco sozinho no balcão olhando para uma hélice branca e enferrujada e comecei a duvidar de tudo. Até de mim mesmo. Eu era agora um espelho branco e de repente não existia nada do outro lado daquele espelho branco. A canção que eu ouvia era estranha e vazia. Puta de uma segunda feira. O dia é uma grande arena de morte. Um dia voce tá lá no meio dos porcos. Você tem quarenta e um e não mais vinte ou trinta e poucos. Tudo vai ficando para trás como poeira. Você tá lá simplesmente rindo no meio dos porcos, sendo como eles, morrendo como eles, sem esperanças ou com alguma esperança morta. Pasarinho machucado. Ninguém sabe o rumo da bala. Deus está lá em cima de nós com seu grande estilingue pronto para nos acertar e depois ir dormir ou se masturbar. A morte dança alegre e eu flerto com ela nos meus sonhos acordado.
não aguento mais isso aqui!

paguei a conta e caí fora.