quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

O ÚLTIMO TIRO - PARTE II

A VIDA PROSSEGUE MOSTRANDO SUA GRANDE LÍNGUA

Segui calado e pensativo, preso ao frescor do ventre de uma tarde aprazível de sábado. Voltava a ficar solteiro e só. Sobrevivente de um verdadeiro tornado que me deixara com alguns arranhões no peito e na alma -além de uma mão quebrada. Mas a vida prossegue mostrando sua grande língua. As coisas voltavam a girar bem devagar ao meu redor: os carros, as vidas, as aves no céu. A Avenida Djalma Batista que se estendia infinita diante de meus olhos. Tudo tão devagar. A cidade ainda me soa belamente estranha. Parece estar sempre acordando de um porre homérico ou de uma hecatombe nuclear. Tudo ainda se regenerando. Um imenso estilhaço de coisas pairando no ar, se espalhando na terra. Via-me agora num bosque que mais parecia um bosque de mortos. Este nome seria o mais apropriado ao lugar: “Bosque dos Mortos”. Andei entre os mortos com a minha doce arrogância e parei diante de um chafariz e ele me fez ficar inebriadamente triste e revoltado. Quem eles pensam que enganam construindo tudo isso aqui? Eu, por exemplo, não quero enganar ninguém. Nem a mim mesmo porque já sou feito de enganos. Mas eles não tem esse direito. Estão transformando essa cidade num grande hospital, e os lugares recreativos, em centros reabilitadores.
Parei em um Café que serviam cervejas e pedi uma. Não pensem que a vida é perfeita, porque eu tinha no bolso os fósforos Paraná que são absurdamente vagabundos e me fizeram pagar um mico ao tentar, a muito custo, acender o meu cachimbo. Uma garçonete com cara de enfermeira, olhando aquilo, veio ao meu socorro:
_O senhor não acha melhor um isqueiro?
_Verdade. É bem mais prático. Quanto custa?
_Tome este. _Olhei para ela e ela parecia cansada. Acendi o cachimbo e uma fumaça densa e compacta subiu. E se espalhou. Um muro branco e sólido, oscilante como um sonho que me separava das outras pessoas. O cachimbo é mesmo um troço interessante. Ele concentra a ação da alma transformando essa ação numa ação morna. Do outro lado do muro, apenas sombras. Espectros de carne ocupando o mesmo espaço oco de suas vidas. Sentada no outro extremo desse espaço oco, havia uma senhora de meia idade a fumar elegantemente uma cigarrilha e ela era uma sombra empertigada e solitária congelada no tempo, lembrando um quadro triste de Manet. Passei por ela me dirigindo ao banheiro e ela sequer se moveu. Também construía seu muro oscilante de densa névoa e aquilo me adoçou um pouco a alma porque eu não era ali o único construtor de muros.
Ao voltar a mesa, fui recepcionado por um sátiro que brincava num ornamento de pedras sob a luz fosca de um abajur. Depois de capturar os insetinhos que rodopiavam em torno da luz, o sátiro mostrava ligeiramente sua língua atrevida e zombeteira. Cogitei que fizesse parte da ornamentação do lugar – uma vez que me encontrava num bosque – e portanto -tomado de admiração pela única coisa que o lugar me proporcionava de alegre, chamei erroneamente a atenção da garçonete com cara de enfermeira e perguntei a ela:
_Ele faz parte da decoração, senhorita?
_Quem, moço?
_O sapinho ali.
_Ai moço, onde?
_Ali, nas pedras.
O sapinho agora mostrava a língua para nós dois.
_Credo, não! Jaime! Jaime! Tem um sapo ali.
_É só um sapinho, senhorita. _Tentei acalmá-la. _Afinal, isto não é um bosque?
Jaime apareceu. Era um mulato alto e forte e ele segurava uma vassoura. Mas Jaime tinha uma alma de anfíbio porque riu e disse:
_É só um sapinho, sua boba. Pensei que fosse um sapo de verdade. _ E enfiou-se lá para dentro com sua vassoura, balançando a cabeça. O sapinho cansou da cena e partiu. E foi assim, que de um modo estranho e repentino, fui acometido de ataques de risos. Ri baixinho. Já era um começo de uma noite de sábado e eu tinha a certeza quase nômade que aquela seria uma noite longa e cheia de revelações. Olhei um instante para a senhora no outro extremo da mesa e ela ainda permanecia elegantemente congelada com sua piteira acesa. E era só o começo de uma noite de sábado. E eu desandei a rir. E depois, parti.


continua...

2 comentários:

  1. eita, na amazônia tb tem degenerados? o mundo tá dominado...

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  2. pois é, veja que coisa. bem vindo ao mundo dos degenerados e também a esse espaço... rssss

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