quinta-feira, 28 de julho de 2011

CALDO QUENTE OU O CAPÍTULO DAS TRANSCRIÇÕES VI -

(Interrupção com a chegada do Hippie)

HIPPIE. já cheguei. não disse que vinha? é que amanheci o dia bebendo...
NEGRO. você pare de besteira...
ÍNDIO. prazerzaço, cara, fica a vontade, pega um copo pra ti, tem cerveja pra caralho aqui...
HIPPIE. pode crer...
ÍNDIO. continuando moçada, aí que vi os caras tudo pedindo ajuda e aí eu pensei, porra não vou pra porra nenhuma de igreja ou de clínica não, vou é pra Porto Velho...
NEGRO. porra, Porto Velho? fazer o quê em Porto velho, véio?
ÍNDIO. tentar a vida no garimpo, é, um primo meu foi pra lá e se deu bem, então eu fui, saca?
NEGRO. e aí?
ÍINDIO. aí que me fodi, né cara, peguei malária, cancro no pau, o caralho a quatro, voltei com as mãos vazias e mais pobre, mas encontrei minha porta de saída, sabe, acho que o cara que entra nessa onda de entorpecente tem que saber a porta de saída e não vacilar, não vamo muito longe não, olha o exemplo do Lobão e daquele cantorzinho lá que engolia tudo, não lembro do nome dele agora, o Lobão, cara, pirou na década de oitenta, o cara experimentou de tudo e nunca baixou numa clínica de recuperação, enquanto esse outro aí decaiu de tal maneira fatalística que começou a engolir isqueiro, canetas, clipes, grampos e até papéis, sei lá, acho que ele queria montar uma espécie de, de, de uma livraria dentro dele, faltou só um livro né cara, pra ele engolir...
LORD. mas o crack é foda, né cara, na época do Lobão acho que nem rolava essa onda de crack.
NEGRO. talvez se esse filhadaputa tivesse engolido um livro ele teria parado com essa marmotagem, né bicho, porque o livro ia, ia, ia, éééé... o livro ia alimentá-lo intelectualmente, e tu sabes que, que o que é ingerido vai pra mente, de modo que se esse garoto tivesse engolido o Paulo Freire ele ia defecar a Pedagogia do Oprimido.
ÍNDIO. ou então ia ter literalmente uma puta dor de barriga ou teria morrido, o fato é que ele não ia escapar de um desses três, aí eu penso, como seria se o estômago dele assimilasse vias tubos digestivos toda a teoria do Paulo Freire?
NEGRO. porra, o cara que engole a Pedagogia do Oprimido vai se tornar um...
ÍNDIO. um enloquente, né cara?
NEGRO. ou então ele poderia vir pra Manaus e engolir os livros do Burguês e aqui fundar uma seita satanista...
LORD. ou então ter uma congestão...
ÍNDIO. eu só não indicaria pra ele os Poetas Ocultos... cara aquilo ali ia deixar ele falando com lacunas e gagueiras.

(Hippie retornando com a cerveja)

HIPPIE. não cortando vocês, mas cara, amanheci com o Lino na casa dele bebendo cerveja, fumando maconha e ouvindo Maysa num fonógrafo.
LORD. Fonógrafo?
HIPPIE. é, o cara comprou num antiquário um fonógrafo, uma maravilha...
LORD. e vocês ouviram Maysa no fonógrafo? que massa...
HIPPIE. sim, e cês sabem que quando o Lino ouve Maysa ele chora compulsivamente e eu não sei o que se passa no interior dele, mas quando o cara ouve Maysa ele chora feito uma criança e isso desde o tempo em que o conheci pintando paredes, ele evoluiu pra publicidade e continua gostando de Maysa e chorando quando ouve ela cantar.
NEGRO. porra, ainda mais num fonógrafo.
ÍNDIO. Maysa é muita fossa, ô, até eu choro, cara.
NEGRO. e tu Burguês, choras quando ouves alguma música?
LORD. choro quando ouço as Bachianas do Villa Lobos.
NEGRO. mas tu és um Burguês mesmo, caralho...
ÍNDIO (pensando olhando pro céu) não lembro agora o que me faz chorar...
HIPPIE. cara, sei que o Lino tá muito bem, trabalha agora com publicidade.
NEGRO. largou os pincéis?
HIPPIE. não, ele continua pintando uns quadros aí, mas cês sabem que aqui é foda pra sobreviver da arte.
LORD. em todo lugar, cara, o cara morre de fome.
HIPPIE. mas aqui é muito pior, saca.
ÍNDIO. aqui é o cu do mundo, mermão.
HIPPIE. lembras do Hanneman, o pintor?
LORD. o que matou os avós a tesouradas e depois se matou?
HIPPIE. pois sim. o cara era um gênio. puta de um artista. viveu e morreu como um marginal. morava nos porões do Palácio da Sete. a mãe era zeladora e servia cafezinho lá. o cara pintava com a alma. olha os quadros do cara. vem canadense só pra olhar. morreu fodido. e hoje essa classe de artistas filhas das putas dessa cidade vivem exaltando o cara. quando ele era vivo os caras cuspiam quando ele passava na rua poeirenta de Manaus pingando tinta da sua pele negra de índio.
LORD. mas isso já foi há cinquenta anos, meu mermão...
HIPPIE. e tu achas que mudou alguma coisa?
LORD. não mudou não?
HIPPIE. mudou porra nenhuma...o cara pra ser reconhecido tem que se deixar colonizar. quem matou Hanneman foi essa gente escrota dessa cidade escrota que agora lhe rendem tributos depois do cara morto.
NEGRO. urrrruuuuuu, não é mentira não, véio.
LORD. (em silencio) ok. cheque.
HIPPIE. e mate, mermão. vamo parar com essa porra de colonizar a arte pra ter que agradar a um público ignorante que só aprecia a arte quando ela é bonitinha. o artista é livre.
LORD. depois dessa, vou pegar mais cervejas...

terça-feira, 26 de julho de 2011

CALDO QUENTE OU O CAPÍTULO DAS TRANSCRIÇÕES V

ÍINDIO. Caralho, sério mesmo? o cara virou um eremita praiano?
LORD. O Zeca tá ai pra não me deixar mentir, não é Zeca?
INDIO E aí, que fim levou o cara depois daquilo?
LORD. Bom, naquele mesmo ano, quando a poeira sentou, ele voltou pra Manaus e agora tá morando de favor no Novo Israel num desses casebres tristes nos fundos de um terreno baldio, e quando ele sai ás ruas a moçada chama ele de profeta e ele vive de doações e caridades prometendo que vai fazer chover e que todos vão ter água em abundância no bairro todo, tive lá com ele logo que voltou do seu exilio praiano...
ÍNDIO. exilio praiano, essa é boa...
NEGRO. cês querem ouvir uma coisa que eu tenho pra falar do Jander? é que um certo dia ao chegar no quartinho dele - um quartinho que ele morava lá no bairro da Compensa - eu o vi chorando de manhã logo cedo porque o mundo todo tava em ... você ligava a tv, você ouvia o rádio, lia o jornal, olhava pra Avenida Brasil as pessoas se matando, então quando eu vi o Jander chorando eu comecei a ver que o Jander não fazia parte desse mundo, sabe cara? o Jander é um ser, um anjo e ele tá aqui pra ensinar as pessoas a serem um pouquinho mais humanas, saca, ele é um anjo ensinando os homens a serem homens porque o cara que chora com tudo isso que tá aí, ele não cabe no plano do mundo, ele é muito mais do que um anjo, ele é ótimo, ele é ótimo, e quando ele vem a minha casa e rouba o meu tapete quando eu estou ausente, eu o amo cada vez mais...
INDIO. depois a gente vai pra ali, tá, gente? pra essa parte mais ampla do quintal...
LORD. aqui é massa, esse cheiro de quintal, dá até pra assar um peixinho...
ÍNDIO. depois a gente dá um jeito aí oh cara, temos madeiras aí, temos carvão também, falta só o peixe...
NEGRO. e o burguês tem uma indenizaçãozinha no bolso...
ÍNDIO. beleza, oh, então a gente une o útil ao agradável, cê une a sua grana, Burguês, com minha força de vontade...
LORD. e a fome dos demais...
ÍNDIO. a fome dos demais...
NEGRO. a fome dos demais...
ÍNDIO. e faremos desse sábado um dia agradável...
LORD. hoje é domingo porra...
ÍNDIO. domingo, é, hoje é domingo...
LORD. já tá bêbado, é?
ÍNDIO. enchi a cara ontem, desde a manhã cedinho...
NEGRO. bebes no sábado de manhã? Cara, o cara que bebe sábado de manhã logo cedo, é alcóolatra...
LORD. que papo é esse?
ÍNDIO. mas é o seguinte, na sexta as três da manhã eu tava com a mente desperta, acordei e fui no quarto da frente pegar um cigarro com o meu irmão, ele tinha acabado de chegar do Distrito e sempre quando ele chega do Distrito ele fica fumando um pretinho na varanda olhando pra lua, aí então eu fui pegar um cigarro com ele e ele estava com fome e com uma ressaquinha de um dia antes então ele me convidou pra tomarmos uma sopa na esquina e fomos e cê sabe que uma sopa pede uma cerveja e começou dali, ele tinha recebido seu ordenadinho do distritinho então começamos a beber e bebemos até o dia amanhecer desse sábado que passou que foi ontem, né cara, e quando foi onze da manhã a gente já tava bem tocado né cara, quer dizer, eu tava, ele não, ele nunca se toca, não para nunca, quando ele embala ele bebe até a morte, ele sim é alcóolatra...
NEGRO. a cerveja de madrugada ela já não é muito clara, tá ligado?
ÍNDIO. ela é como gasolina. a gasolina na madrugada ela é aquela concentração de átomos né? e durante o dia ela é mais pura porque os átomos se desprendem do seu núcleo.
NEGRO. vou começar a escrever sobre essa sacada tua, sabe, não, é sério, esse tipo de coisa não nasce do nada, começa pela gasolina depois a situação vai ficar de tal forma que acaba entrando no plano filosófico total.
Índio. pois é, botei um cartaz bem ali na entrada do barraco pra eu mesmo lembrar que não posso beber muito, recomendação médica, ahh, tá bem aqui, que não posso beber durante sete meses, vou buscar pra cês lerem...
LORD. Adicto só por hoje?
INDIO. Hann?
LORD. Adicto só por hoje, você?
ÍNDIO. ééé, bem...
BURGUÊS LENDO. Nada de bebidas alcóolicas durante sete meses ininterruptamente para o paciente em questão. (gargalhadas do Negro)
LORD. quem foi este médico?
NNEGRO. Quem foi este filhodaputa?
ÍNDIO. eu mesmo. eu em mim.
NEGRO. mas olha, se tu quiseres rasgar isso aqui (barulho de papel rasgando) vamos abortar essa ideia pavorosa que nunca será mesmo cumprida e voltar a ser feliz porque o melhor médico é o espelho da gente, cê chega com ele e diz, olha cara, pelo amor que eu tenho por ti mesmo, hoje cê não vai beber, mas se tu beber, amanhã tu volta ao espelho e repete de novo, olha cara, pelo amor que eu tenho por ti, hoje cê não vai beber e aí se fraquejar de novo cê volta ao espelho de novo...
ÍNDIO. aí vira um circulo vicioso, porra!
LORD. não cara, quando eu tô na drenagem de álcool não gosto de me olhar no espelho, não.
ÍNDIO. não, deixa eu ver... eu quando tava na maconha direto e isso nos anos oitenta, aqui rolou muita maconha, muita bola, optalidon, e tinha aquele outro lá que a gente aplicava na veia e ficava que nem um zumbi gelatinoso pelo bairro de Petrópolis, ah, lembrei, gotanergan, a gente aplicava esse troço na veia e eu tomei muito essa porra na veia quando tudo aqui era barro e poeira e tristeza também, maior onda, a gente ficava que nem geleia, acho que já contei essa história pro Burguês, e quando chegou assim numa certa parte da minha vida eu comecei a olhar pela minha janela o desespero dos pais levando seus filhos pros centros de recuperação, pros hospitais, pras igrejas, pra tentar tirar seus filhos daquilo porque foi uma epidemia de verdade no bairro todo...

quinta-feira, 21 de julho de 2011

CALDO QUENTE OU O CAPÍTULO DAS TRANSCRILÇOES - IV

________________________________(Segundo encontro. Fevereiro de 97) – Bairro de Petrópolis

O LORD, O NEGRO, O ÍNDIO, E O HIPPIE
(laiálaiá, procurando você... Chico no fundo)

LORD. dá pra cruzar as pernas aí, ó, caralho! olha o aparelhinho, pô...
NEGRO. cara, não vou machucar essa porra aí não, olha Burguês, queria te dizer que desde que tu compraste esse radinho tu ficou muito bosal cara, numa viadagem que vou te contar, saca?
LORD. quem, eu?
NEGRO. sério, cara, ficaste muito fresco quando começastes a documentar fatos, causos...
LORD. é, mais sexta feira tu reclamastes a ausência dele, lembras? aí eu saquei ele da bolsa e você e o Jander ficaram alegrizinhos juntos, lembras...?
NEGRO VIRANDO PARA O ÍNDIO. mas é fato cara, o Jander lá presente tava numa educação sabendo que tava sendo gravado, e bicho, ele cruzou as pernas numa pose ateniense com uma maquete de dragão toda feita de durepoxi e ele todo tempo pianinho cara, como se fosse pousar pra uma foto, e ele expressou toda saudade que ele tinha do Índio, falou do amor pelo qual o conduzia na vida, e disse que ele agora que tá ficando mago... (risadas)
ÍNDIO. mago é? tá ficando agora Castanheda, é?
NEGRO. tá ficando de tal forma que ele agora adivinha quando as nuvens choram. só mentiu quando disse que ia chegar antes de nós dois...
LORD. disse que ia te acordar com uma garrafa de Bacardi que tinha ganho de presente dos gringos, eu lembro...
ÍNDIO. mas isso é muito dele, né cara?
NEGRO. foi o que eu disse pra ele, não adianta, cara, tu marcar nada com a gente porque se a gente marcar as duas tu chega as seis, ou talvez nem apareça porque tu sempre tomas outro caminho...
LORD. agora esse lance aí de mago, de bruxo, sei lá o quê, é sério, o cara virou o profeta do bairro de Novo Israel, todo mundo conhece ele lá como o profeta...
ÍNDIO. conta essa estória aí direito, mermão...
LORD. o cara anda lá pelo Novo Israel, cabeludão, com uma barba de profeta, de sandálias e vestindo aquela camisa florida de cambraia dele que um dia ele tentou empurrar pra mim a trinta reais, é, o papo é sério, o Zeca sabe disso, né Zeca? mas deixa eu te contar a trêta, eu encontrei o Zeca num domingo desses lá pelo Rodway bebendo uns chops e...
ÍNDIO. Rodo, porra! que mania de inglegizar as coisas, Burguês...
LORD. ok ok, Rodo, desculpa, inglegizo tudo, eu sei, mas bom, como ia dizendo, encontrei o Zeca ali bebendo uns chops no Rodo e aí a gente resolveu que ia pegar um barco e atravessar o outro lado do rio pra beber mais cerveja num desses flutuantizinhos e aí então a gente foi, eu e o Zeca, não foi Zeca? e bom, aí fomos, certo, e era um domingo desses de sol ardente, bonitão mesmo, a gente com grana no bolso parecendo uns sultões, ó, pode crer, aí chegando lá saltamos num flutuante no Cacau Pirêra e enchemos a cara, o Zeca como sempre se engraçou de uma velha que estava bêbada e que dançava e mostrava os peitões caidões dela pra gente e aí tu sabes que o Zeca é chegado numa velha, saca, então o Zeca queria arrastar a velha pra uma praia deserta aí então eu disse, “pô cara, porque será que tu gosta tanta de velhas assim?” não foi Zeca? e nem adiantou o lance da velha cuspir a dentadura dela dentro do copo dele e vomitar tudo na mesa, o cara arrastou a velha assim mesmo pra trás do flutuantizinho e meteu ferro na velha, o Zeca ás vezes parece mesmo um animal sem alma cara, e quando eu falo isso pra ele, ele vem com aquela teoria darwinista de seleção natural e sei lá mais o quê, aí então ele voltou de lá friozão, guardando o pau e cheirando o dedo dele, como se nada tivesse acontecido e pedimos mais cervejas e depois resolvemos dar um pulo na praia, e eu não sei o que a gente foi fazer na praia aquela hora, ah, lembrei, a gente foi fumar um baseadão, não foi isso Zeca? é, foi, lembro agora, aí então rodamos a praia toda atrás de um lugar tranquilo e seguro pra fumar aquele baseadão porque ainda haviam pessoas na praia e a porra da guarda costeira rondava por ali, foi aí que avistamos um container imenso e abandonado que servia de abrigo pra mendigos, drogados, pés inchados, e no meio deles, sentado bem no centro, vimos um hippie de cabelos grandes e barbas longas lembrando um daqueles eremitas do deserto, e ele tecia serenamente uns colares indígenas, aí eu disse pro Zeca: “cara aquele lá não é o Jander?” “ é ele mesmo cara”, então passamos pelo amontoados de bêbados todos ali empilhados e fomos até onde ele estava e quando ele nos viu ele sorriu na maior naturalidade e fez sinal pra gente sentar no chão, e aí sentamos e o Zeca começou a enrolar o seu baseadão enquanto o Jander dizia: “e aíii cara, tudo bom com vocês?” e parecia tão natural esse “e aíííí cara tudo bem com vocês?” bem típico dele mesmo, e eu perguntei: “cara o que houve, por que tu veio parar aqui?” quase um ano não tínhamos notícias dele, achei que tinham até matado o cara porque ele tinha essa mania escrota de ficar devendo a “boca”, e ele então nos explicou exatamente o que eu já esperava ouvir: “bronca alta lá na cidade, um ano que não piso em Manaus, vim para esta outra margem e essa gente aí é tudo companheiro...” “e como tu se vira pra comer? estás tão magro.” “ah, me alimento das frutas das árvores, ou me viro com os meus trampos aqui mesmo na vila do Cacau. comida é de menos, os manos aqui são gente boa, tudo aqui é dividido, quando alguém descola uma lata de conserva ou uma garrafa de cachaça, divide com os companheiros porque aqui é tudo dividido, este container é um albergue solidário, que nem aquela onda maluca do Steinbeck que tu leste pra mim, lembras? tô muito bem aqui, quando a poeira sentar, eu volto á Manaus.” perguntei dele: “mas o que rolou lá?” “bronca, bronca alta, velho, com os caras da boca no bairro do Coroado e agora os caras tão na minha cola querendo me matar, por isso tive que me refugiar aqui na praia, já tô aqui acho que uns seis meses morando neste container, quando a poeira baixar eu volto...” fumamos acho que uns quatro ou cinco baseadões e aí então caímos fora porque já começava a ficar escuro e sombrio no container e os bêbados começavam a se agitar querendo beber e a fumar o nosso bagulho também...”

terça-feira, 19 de julho de 2011

CALDO QUENTE OU O CAPÍTULO DAS TRANSCRIÇÕES - III

LORD LENDO. os anos não me furtaram a esperança de tomar o amor como uma coca-cola...
NEGRO. eu pensei muito quando casei, saca? eu pensei muito muito muito muito muito muiiito cara, eu queria ter um filho que pudesse voar, eu queria ter um filho que ultrapassasse os limites desse mundo tão caduco, tão tão tão, decadente, éééé... então eu a contemplar a figura da Clara no ventre de Clisse, eu me vi em Yuri Gagari, o cara que foi pro espaço, que saiu dessa terra poluída e vulgar, saca, e ao retornar de lá, o seu filho pediu: “pai eu queria dinheiro para comprar um pão porque este mundo ainda é pobre e eu estou com fome.” então eu pensava com Clisse, minha esposa, na possibilidade de ter uma filha livre e resolvemos encarar, e quando eu afirmo isso aí estou dizendo que Clara é um projeto perfeito de um mundo perfeito, quando eu, eu, eu imagino, quando eu, eu, eu, eu vejo minha filha sorrindo é porque ela tá bem alimentada, porque ela tá com os medicamentos em dia, e quando eu penso de colocar a Clara em evidencia na minha poesia eu sempre penso, ela não é do mundo que vivo, que comtemplou guerras santas como guerras econômicas e que no fundo as guerras santas sempre foram guerras econômicas e sempre serão...
LORD. e O Cais?
NEGRO. O Cais é a revelação do caboco. caboco que contempla o seu dominador e que tem por ele um amor muito grande porque o caboco no fundo no fundo adora o seu dominador, na verdade, saca, o caboco quer ser um dominador pra dominar outro caboco...
LORD. essa parte aqui do final, né: os turistas revelam em suas máquinas fotográficas um mico leão dourado da foto que bateram do caboco...
NEGRO. é justamente aquilo que falei, Burguês, o caboco é tão, é tão, é tão besta, e eu sou caboco e logo sou besta também e que portanto tenho uma admiração total por aqueles que me sacanearam, e que hoje eles nos tem como algo que está em extinção só que ninguém quer ser chamado de caboco, cara, quer ofender alguém chama esse cara de caboco, tá em extinção o caboco.
(barulho da chuva lá fora. o Negro acendendo um baseadão.)
NEGRO. cê preste bem muita atenção em dizer que, ao escurecer manaustérico terá chuva no dia em que as nuvens negras se abrem pra você e se mostram ocular, você se torna... naturalista, né? às vezes eu tenho até uma puta de uma ideia que vai salvaguardar o universo e quando eu revelo pra alguém isso, é um é um é um... sonhador elas dizem. algumas coisas que eu contemplo, tipo, é, uma CACHOEIRA DE FLORES e eu amo esta visão glorificada... mas cê vai fazer outro livro em cima do material que tá colhendo?
LORD. não, euuuu...outro livro?
NEGRO. não tá parecendo uma orelha, tá parecendo outro livro...
LORD. eu vou, eu vou, livrotificar, é isso...
NEGRO. livrotificar?
LORD. eu falei livrotificar?
NEGRO. você falou livrotificar.
LORD. talvez eu quisesse dizer outra coisa, tipo, liquidificar, é isso...
NEGRO. gostei mais do livrotificar...
LORD. então fica, livrotificar, acho que neologizei.
NEGRO. é, você neologiza tudo, é o que mais gosto em você, Burguês...
LORD. é, eu neologizei a coisa.
NEGRO. no fundo é um barato morder o nariz da palavra.
LORD. então vamos aos fatos porque não temos certeza de nada.
NEGRO. brrppp
LORD. dia desses queimei meus lábios numa erva assim...
NEGRO. afffffff
LORD. essa porra vai subindo vai subindo vai subindo pra cabeça e aí cê já viu.
NEGRO. tu fumaste um freebase, caralho...
LORD. não tenho certeza agora, mas sei que vi tudo troncho, mas depois vieram as flores descendo num arco-íris, foi um baratolegal.
NEGRO DANDO UM PEGA. a única certeza do poeta é que a tua certidão amanhã vai ser outro dia e quando o outro dia não acontece, aí mermão, vem a desilusão, o desamor, aí dá uma vontade de morrer quando cê tá afim de falar alguma coisa que é muito produtiva mas que não é ouvida, vem a morte e te leva como levou meus poetas amáveis porque você quer dizer as coisas e não tem espaço, aí você chegou na celulamater que é este o propósito do Branco que é ser ouvido, apreciado num quero, porque o que é ouvido nem sempre é o apreciável, o que eu quero dizer com o Branco é que, chega de ouvir tanta lezeira, quero falar do caboco mas não daquele caboco sonhador que o Raízes sempre canta (Negro cantarolando em banto, a cançãozinha) “sou um caboco sonhador meu senhor, viu?” não é esse caboco que eu canto não, sou alguém que sonha com o caboco voando mermão, um caboco que tenha um carro do ano, mermão, é o socialismo por cima e não o socialismo por baixo, ele é político, partidário o Branquinho, e tá lá, cara, na última parte do livro tá lá, onde eu chamo o caboco de TRAPEZISTA, trapezista não, eu chamo de MALABARISTA.
LORD. dorme a noite com mil lençóis de nuvens brancas, com mil clarões de estrelas reluzentes, com mil cantos de galo, com mil madrugadas frias...

sexta-feira, 15 de julho de 2011

CALDO QUENTE OU O CAPÍTULO DAS TRANSCRIÇOES - II

NEGRO. tá aí. levanto tudo isso aí sem essa leviandade burguesa e urbana...
LORD. essa coisa romântica, né?
NEGRO. que porra de romantismo, mermão, quando intitulo meus poemas como poemas marginais (falando agora com o pedreiro) sim senhor, amado, amanhã tu colocas a pedra. cuidado com o neguinho, esse aí é o pretinho. (referindo-se aos cachorros deitado no portão).
LORD. sim. quer dizer que foges desse romantismo todo?
NEGRO. Burguês, sou do signo de capricórnio, sou extremamente averso a, a, receitas, acredito no econômico, no capitalismo, saca, e acredito também em São Francisco, sou devoto de São Francisco, já inclusive desfilei no bairro inteiro vestido de São Francisco pra pagar uma promessa da minha perna quebrada, então eu tô num, num, num, nos dois extremos, cara, quando eu acredito em São Francisco eu nego ao capitalismo e quando eu acredito no capitalismo eu nego a São Francisco, mas eu estou entre os dois, tá ligado? sempre entre os dois...
LORD. soh.
NEGRO. o Archetecto, deixa eu te mostrar o Architecto, por exemplo, cara, ele tá numa paisagem, éééé, concreta...
LORD LENDO O POEMA. compraram um metro de poesia de um poeta social. para cada centímetro de poesia um verso, para cada verso um real. deu 69 reais no final. compraram um litro de poesia de um poeta simbolista. para cada centilitro de poesia uma estrofe, para cada estrofe uma moeda. deu trinta e três moedas de prata no final.
NEGRO. trinta e três moedas de prata!! foi o preço que Judas vendeu o Cristo, tá ligado?
LORD CONTINUANDO. compraram um quilograma de poesia de um poeta concretista. para cada grama de poesia um cheque. deu cheque mate no final.
NEGRO. o primeiro cheque é o cheque em dinheiro, depois o jogo. a brincadeira com a poesia vai pra essa coisa de que as palavras elas tem a mesma, a mesma, éééé, estrutura verbal, vocabular e é escrita em uma outra estrutura, cheque cheque, saca, cheque dinheiro e cheque mate...
LORD FINGINDO ENTENDER. soh. compraram poesia de um poeta marginal. para cada segundo uma dose de aguardente, para cada dose de cana ele recitava Cachaça. deu a maior porrada no final...
NEGRO. cê imagina a poesia marginal que é o meu barato de escrever literário...
LORD. tu assumes mesmo que és um poeta marginal?
NEGRO. claro, sou mesmo um poeta marginal, onde como clássico eu tenho o Chacal, o Leminsky, Pignatari, esses são os meus grandes instrutores éééé, presentes, quando eu bebo do modernismo, quando eu vejo a revolução de 22, quando eu tô, ééééé cimentado em Mário de Andrade, Oswald de Andrade, justamente Manuel Bandeira que é meu gênio irreverente e manso, Manuel Bandeira é o meu olhar cristalino, minha loucapaixão, éééé a minha bela etapa de vida, A MINHA GRANDE TREPADA, É CARA, A MINHA GRANDE TREPADA, é foda. de Manuel Bandeira eu tenho uma afetividade, uma identificação, eu me identifico, eu eu eu.. cê vê no Architecto toda uma irreverência marginal próprio dos modernistas...
LORD. e este chamado, O Canto do Fauno?
NEGRO. cê sabe o que é o Canto do Fauno, não sabe?
LORD. cara...
NEGRO. é uma lenda brasileira que rechaçava, tripudiava, sabe, do, do, lirismo.
LORD declamando. ah, lirismo que não passa, que não envelhece, que não se rebela, que não caduca, como é bom te acompanhar com os olhos do futuro, andas a permear risinhos, soluços, fricotes, lirismo que sem pressa ver as coisas acontecerem, vê os homens se foderem, vê a mata matando a fome do homem e o homem matando a mata, lirismo que com os pés descalços pisa no asfalto e o barro sonha em ser um tapete voador e voar pra bem longe daqui...
NEGRO. volta um pouquinho aí: para não ter que ver as máquinas da ação conjunta, e voar para bem longe daqui. tu pulaste, cara.
LORD. soh. para não ter que ver as máquinas da ação conjunta e voar para bem longe daqui. é, eu pulei de fato.
NEGRO. isso, isso. houve essa mudança porque eu prefiro falar de pouquinho e pouquinho porque o meu desejo inicial era meter bronca, sabe, sem saber quem seria a vitima da minha metralhadora ambulante, sabe, da minha metralhadora ambulante apontada em qualquer direção e agora no Branquinho estou mais sustentável, eu estou mais dizendo as coisas sem ofender, de magoar, do ponto de vista da escrita, porque no caso desse poema, o Canto do Fauno, tá dizendo tudo que eu expresso...
LORD. acho que aqui resume, né...
NEGRO. resume, Burguês, acho que pude te mostrar a importância que o Branquinho tem na minha vida.
LORD. só pra concluir, e este Velha Serpa, cara, tu modificaste alguma coisa?
NEGRO. sim, tem A Velha Serpa, cara, ela sofreu uma mudança significativa pra mim porque era exatamente quando eu me mostrava parceiro na dor, sabe, e quando eu olhava a dor eu via a dor no corpo dos meus amores porque eu nunca imaginei a dor longe de mim, eu sempre imaginei a dor perto de mim e o caso do Velha Serpa foi no dia que o Jander foi preso pela polícia, sacaniado pela policia no festival da canção de Itacoatiara porque ele tava com o baseado na mão na sua barraquinha e era só um baseadinho saca, e tinha lá pessoas poderosíssimas fumando e vendendo drogas poderosíssimas também e pegaram justamente ele e levaram ele pra cela e espancaram ele e aquilo me revoltou porque eu odeio saber que uma pessoa que eu amo é sacaneada por esses idiotas, esses insignificantes que vão ser varridos, banidos da nossa sociedade porque eles representam a força ideológica do poder fardado, sabe, usufruindo dos meus direitos, recebendo o meu pagamento porque sou eu quem os pagava e quem os pago mas que não os pagarei no futuro porque machucam as pessoas que eu amo, e hoje o Velha Serpa está com uma leitura modificada, é... ainda sim eu a decanto em verso e prosa porque foram muitos fecanis nas costas e aquele lugar sempre me recebeu de braços abertos, e eu digo que já cheguei em Itacoatiara sem um centavo no bolso, entrei no restaurante com um cartão de crédito que eu achei jogado na frente do Bradesco e comi a melhor comida, bebi a melhor bebida que o prefeito da cidade comia e bebia e no final quando apresentei o tal cartão o cara disse pra mim, “meu amigo eu não aceito esse cartão”, e fui preso e passei o Fecani de 96 preso e foi a prisão mais gostosa da minha vida porque eu estava de bucho cheio e culminou naquele ano de ser um ano eleitoral e nessa época de eleição os caras espancam menos, e no segundo dia que eu tava preso jogando dominó (tosses) desculpa, ganhando dinheiro na delegacia de madeira que eu podia dar muito bem um chute nela e ela cair e eu fugir se eu fosse um facínora espertalhão mas fiquei lá jogando dominó e declamando poesia pros presos e os caras só me olhavam então é essa a Itacoatiara que eu conheço e a outra que eu conheço é a Itacoatiara que um dia cheguei morto de fome naquele verão de 95 e uma velha simpatizou de mim e me dava pacu toda manhã no meu café da manhã, e quando eu acordava de madrugada ela chupava o meu pau e eu tinha que meter na velha toda madrugada e de manhã depois do café também e este é o preço, saca?

terça-feira, 12 de julho de 2011

O HOMEM QUE PERDEU O CU - LIVRO II

CALDO QUENTE OU O CAPÍTULO DAS TRANSCRIÇÕES

NEGRO. sabe O que eu acho engraçado, é que a gente faz um monte de coisas, tipo, escola, teatro, música, mas a literatura, saca, a poesia, ela é um catchup, a maionese que enfeita um trabalho, né cara. nunca pensei que fosse sentar embaixo de uma árvore e sobreviver da minha poesia... sabe cara, tem uma hora assim que a gente não faz nada, olha prum lado olha pro outro, olha pra trás, olha pra frente, pouca coisa se tem feito pela poesia, é, ontem as mesmas pessoas, sempre os mesmos sobrenomes, morre um nasce outro sempre se intitulando poeta amazonense porque o avô fazia parte do clube da madrugada, porque o bisavô tomava cachaça debaixo do mulateiro e eu entendi já, tenho certeza hoje que o clube da madrugada não é e nem nunca foi um referencial na minha vida.

LORD. Interessante saber disso aí...

NEGRO. Eu prefiro dar prioridade pros loucos, pras putas, pros travestis, pros músicos dos bares, a que dá, dá, saca, prioridade a esses poetas caducos, eu entendo uma coisa assim que é muito forte na minha vida, eu escrevo exaltando somente o que eu vivi ou só escrevo o que eu sei, tá ligado?

LORD. O Branquinho é uma vivencia no caso, é isso?

NEGRO. O Branquinho é a construção de um pensamento planejado com outras pessoas, tipo, ele protesta contra a hipocrisia, contra o ufanismo, contra esse ideário de boto e também das folhas secas caindo no ribeiro, o manifesto do Branquinho é de que o poeta sonhe, mas que ele não sonhe um sonho manaustérico, parado, estático, saca, O Branquinho tem um sonho em que o sonhar ele ultrapassa a barreira do ser amazônida por ser água do Rio Negro, por ser chão, por ser barro amarelado do Solimões e por ele ser... (shuuaaaa barulhinho da cerveja no copo e uma voz de mulher no fundo dizendo: “vou lá na sua mãe.”)

Negro. um sonho, outro sonho que nasce né e abre asas pra ilusão e é das ilusões que o Branquinho emerge, e quando todas as ilusões se encontram, gesta o Branquinho, quando todos os pesadelos, quando todos os derrames cerebrais quando todos os becos e guetos e planos e quando toda a propagando do cinturão verde aparece na televisão, o Branquinho adormece, e quando toda a tosse de madrugada, quando todo o sexo matutino, quando todo o gozar acontece, ele se recria, ele se professa, e o Branquinho é isso, uma leitura que eu tenho há quatorze anos, que eu tenho a quatorze anos uma merda, escrevo desde os quatorze anos, primeiro trabalhei o Louco, primeiro que o Louco era um trabalho, éééé, já continha poesias que está dentro do Branquinho, poesias de um jovem apaixonado, uma espécie de Werther Goethiano dos nossos dias, saca, mas sem aquela onda de suicídio, O Branquinho tem partes do Louco e do ¼ Fechado que é a sua vela mestra, que é a sua ideologia, sua sustentação teórica, eu bebo do Louco, bebo no ¼ fechado, bebo numa trajetória, tá ligado?

Lord. mas por que Branquinho... essa ideia do nome...?

Negro. porque eu escrevia num papel de pão, porque não tinha grana pra ter caderno a vontade, ééééé... não tinha grana pra papel nenhum, então os papéis que eu escrevia os meus poemas eles eram branquinhos e não há qualquer menção disso no livro, saca, porque ele não cabe naquilo que você tá vendo, cabe naquilo que você vai sentir que é o Branquinho na tua vida.

LORD LENDO. És branquinho pois te abrigas no coração do homem que ofegante da labuta do dia a dia adormece na solidão das multidões, aí vem essa interrogação, né?

NEGRO. por que tu és tão branquinho, né...de fato.

LORD. isso, porque tu és tão branquinho... és branquinho porque geras a compreensão do mito, porque tens harmonia com os bichos, com o lixo, com os seixos, com os índios, com os negros, com os brancos, com os homossexuais, com as mulheres, com os seus, é por isso que és tão branquinho?

NEGRO. poderia te dizer que...que poderia ser uma espécie de manifesto onde eu nego a certeza em que não há nada acabado, não há nada pronto, que não há um círculo fechado na poesia, não há explicação sequer da ética, da lógica, há somente a incerteza, há somente... (voz de pedreiro no fundo: não vai dá pra terminar o piso hoje não, falta cimento, poeta...)

NEGRO. e grana também meu cumpadi. essa é a voz do meu o pedreiro... essa é a voz do meu pedreiro que tá trabalhando comigo há uma semana tentando me apresentar uma relação de afeto no vertente que é uma relação econômica e que fique bem entendido que pra ter amigo e um bom pedreiro precisa se ter dinheiro... mas continuando... o que te chamou atenção pra fazer a orelha deste livro, burguês?

LORD. oooo livro todo ele é...um pouco de tudo aqui na verdade... ele é...

NEGRO. prefiro dizer que ele é um pouco do nada, porque se ele fosse um pouco do tudo eu já entenderia que existe o tudo, e como o Branquinho... não há nenhuma certeza nele então não existe o tudo, o que eu justifico no Beijaflor, em que, se já existe alguma coisa logo não existe nada, é apenas o branco no branco, (barulho de cerveja enchendo o copo) é o não acreditar no tudo.

LORD. Soh.

NEGRO. o meu olhar, o meu objeto é o regionalismo, o caboco sem nenhum tipo de, de, de, sensacionalismo, frescura, essa evasão ás riquezas tão comuns... cara, eu não acredito que, pra poder falar do regionalismo tenha que eclodir mitos envelhecidos e nem tampouco sentimentos esquecidos, aí eu volto a razão, e quando falo na razão eu fecho na dúvida (barulho de serrote nos fundos. depois o bater seco do martelo do pedreiro.)

NEGRO. lê o primeiro social, cara...

LORD. Soh. (depois lendo o poema) vejo fumaça de carros e cigarros, de aviões escurecendo o teu céu. ouço palavras românticas e sons de pássaros harmonizando tua alvorada. pedaços de copas de seringueira se perdem no chão... preciso ler mesmo até o fim, é grande esse aqui...

NEGRO. vai lendo, vai lendo, vai lendo... (tosses)

LORD. então vou pular um pouco. o arco íris desfez a aliança contigo, a lua cheia escureceu, as estrelas cessaram de luzir, os tambores emudeceram e até o porto de lenha resolveu se afastar. lembras a cobra grande que morava debaixo da Igreja da Matriz?

NEGRO. tu lembras?

LORD. lembras do bondinho que trilhava arrogante na frente do teatro?

NEGRO. tu lembras?

LORD. lembras das festas juninas no campo General Osório?

NEGRO. e quem é General Osório, quem é que foi isso, cara?

LORD. lembras dos papagaios de papéis que dançavam no céu saudando mais um rio-nal? tu não lembras disso também? Os sanhaçus foram os únicos que nunca esqueceram como é bom viver aqui na cidade riomar...

domingo, 10 de julho de 2011

CONVITE - CALDO QUENTE OU O LIVRO DAS TRANSCRIÇÕES

"CALDO QUENTE OU O LIVRO DAS TRANSCRIÇÕES" Faz parte do LIVRO II da novela "O HOMEM QUE PERDEU O CU",que estou escrevendo.
Convido todos vocês a acompanharem a segunda parte dessa obra através desse blog. A novela estreia aqui nesse espaço dia 12 de julho (terça feira, portanto) e os capítulos estarão disponíveis todas as terças e quintas.

Abraços!!

Márcio Santana

A DIALÉTICA DA ALMA IV

Você toma algumas aspirinas logo pela manhã e senta em frente do seu computador, Você precisa atualizar seu blog, terminar aquele conto, abrir seus e-mails, viajar, descansar, engravidar, Você está se sentindo muito vazio, Você é o vazio de si mesmo, Você ontem teve uma noite agradável na companhia daquele seu amigo que aprecia o que você escreve, que prefaciou o seu próximo livro de contos, ele o considera um escritor impressionista-realista, "É possível sentir o cheiro, a textura dos teus contos", ele sempre lhe diz isso de cara limpa, seum um gole de álcool na alma, Você então sente que ele fala a verdade, que está sendo sincero e você fica embevecido, TODO TOLO POR DENTRO, Ele acredita nos seus escritos, mas você ás vezes parece que não, parece que não acredita em você, Você foge de você mesmo, quando é que você vai mostrar a sua verdadeira cara, se livrar de vez dessa máscara falsa e covarde, Não há nenhuma mensagem em seu e-mail, nem um recadinho de Clarice, ninguém, também não há postagem nenhuma em seu blog, nem um texto interessante para a revista que você inventou, Sua cabeça dói um pouco, está de ressaquinha meu caro, Você agora tenta se concentrar no conto, mas não consegue, as teclas estão travadas, você tá travado, sua vida travou, mas ainda acho que você está fazendo charme, marketing de escritor, Tudo que tem a fazer é debulhar as palavras, é um domingo eu sei, e os domingos são como facas amoladas, Você está se saindo bem no trabalho, na sua velha função de professor, tem cumprido as goras direitinho, enrolado menos, isso é um motivo de orgulho pra você, você tem agora uma profissão, não é mais aquele vagabundo iluminado, as notinhas caiiinnndo, hein? hein? Esquece um pouco o conto, não adianta ficar así sentado com tua alma expirando dentro desse teu corpo, dentro desse quarto porque não vais conseguir espremer nada, só não esqueça de uma coisa, você é um herói escrevendo nessa cidade sonolenta, feia, tola e retrógrada, por isso que adoro essa tua teimosia,
que a poronga nunca se apague dos teus olhos...

quarta-feira, 6 de julho de 2011

A BARATA CASCUDA DA BANHEIRO OU A DIALÉTICA DA ALMA III

Você não esperava por essa, não é mesmo meu camarada? esta barata cascuda aí no pia do seu banheiro, o ser mais repugnante que existe, o mais nojento de todos, o teu pior pesadelo acordado, sim, pois que não estás dentro de um sonho, tudo em tua volta é real, repara os ladrilhos, as paredes, o vaso, o espelho, as horas, Olha as horas que são, quase três da manhã de um sábado e você aí bêbado com seu chinelo nas mãos diante de uma barata cascuda daquelas bem grandes e você não sabe o que fazer, Ela está na pia onde você costuma levar o seu rosto todas as manhãs, onde escova bem a sua alma, onde se regenera, Você se aproxima dela e ela se volta e olha bem no fundo de seus olhos, aí você treme porque, bem, porque não és corajoso o suficiente para esmagá-la com seu chinelo, quem sabe dialogar um pouco com ela, você ainda é capaz disso, de dialogar, mas você e ela estão muito cansados, mortos por dentro, talvez um precise do outro, e é ela que inicia dizendo, "Escuta meu rapaz, faz logo o que você tem que fazer, já não me resta mais nada mesmo, sou uma barata velha e cansada disso tudo", Você, é claro, dá um passo para trás bastante assustado com a reação dela e ela continua, "Sei que te causo repulsa, enjoo de mulherzinha, portanto, acaba logo com isso antes que eu avance em você e te devore", Você se aproxima dela com sua chinela, parece decidido agora e ela esperta, apela,"saiba que você é pior que eu, você não tem amor próprio, você é egoista, anda por aí sem norte e sem identidade, e o que é pior, não sabe o que fazer da sua vida", Sua vez, "E você, você não passa de uma barata desprezível, uma merda de barata cascuda e eu estou no controle da situação, posso te matar, e aí?" Vez da barata, "Aí que isso não vai acontecer porque você só tem a você e a sua covardia, vacilas diante daquilo que podes pôr fim num segundo, mas não o faz, por isso, anda, acaba logo com essa estória antes que eu avance em você e desove dentro dos teus olhos", Você se apavora e tomba vertiginosamente sobre o vaso sanitário, Você não sente mais caber dentro da banheiro, dentro de você mesmo e você sabe que se você não agir logo, a barata vai ocupar todo o espaço de sua casa, de seu mundo, de seu átomo, "Quê que cê tá fazendo aí sentado? que porra de espécie humana é você? Você é feito do quê? Você sente nojo de mim e eu de você, então porque raios não chegas logo a um consenso? deixa eu te dizer uma coisa, vivi mais que a natureza consente a uma barata, vi mais do que você viu com essa sua idade toda, e lhe digo, a aberração humana me assusta, Vocês nos veem como seres asquerosos, mas vocês é que são asquerosos, nunca vão evoluir, quê que há? tá apaixonado? tá amando? sei que está, e você amando é engraçado, fica tão vulnerável às coisas que não consegue pôr fim a essa situação ridícula, o amor torna vocês humanos demais, humanos e cegos, escuta o que vou te dizer, não é todo dia que voltas para casa com um arranhão feio no peito e encontra uma barata cascuda na pia do seu banheiro para conversar, antes que eu assuma o teu corpo e me torne a tua mãe, acaba logo com isso tudo!" Você então se levanta, pega o chinelo e tenta acertar por diversas vezes a barata que se esquiva, Ela agora não duvida mais de sua coragem e apela uma última vez, "Espera um pouco aí, você gosta de Abba? The winner takes it allll, tenho a coleção completa lá em casa, e de fimes iranianos você gosta? sei que gosta, semana passada assisti a um que

PLAFT!!

terça-feira, 5 de julho de 2011

03 PUNKS E UM SÔCO INGLÊS

Você está agora no balcão do seu bar preferido, bebendo sua costumeira cerveja quando ela se vira pra você e diz, "Vou vender o Castelo, Mário, e vai ser ainda este ano", A cerveja nessa hora entra enviesada garganta abaixo, a música na Juke Box é uma porcaria, e esses roqueirozinhos de merda em tua volta, "Não dá mais, maninho, são nove anos pelejando com isso aqui, ah, cansei," Você pede outra cerveja e ela vem taciturna, cabisbaixa, deslizando no balcão, "E o que vai ser disso aqui?" Você pergunta a ela enquanto ela enche o seu copo até à borda, "Tem um médico aí interessado em comprar este prédio, quer fazer disso aqui uma clínica," "Porra, uma clínica?" "É, uma clínica, uma clínica psiquiatrica", Você fica um pouco calado, pensativo, você vê pessoas entrando e saindo pela portinhola do Castelo, logo, logo, o lugar vai estar entupidinho de gente, como sangue circulando numa artéria de concreto porque é assim que é o Castelo às sextas-feiras, "Vão demolir tudo isso com certeza", "Acho que sim", "Você pensativo de novo - sobrancelhas levantadas, "Mas se demolirem o Castelo vão estar demolindo um pedaço dessa avenida, dessa cidade, dessas pessoas todas aqui, de mim", Você começa a delirar, o àlcool chegando ao córtex, "Que se dane, nada fica muito tempo em pé e eu estou cansada disso aqui", Você então dá de ombros dizendo, "Sendo assim, você é a dona do Castelo mesmo", Aí você e ela ficam calados para sempre, então ela se afasta e vai até a pia esmagar os limões que é pra cachacinha dos caras duros que frequentam o lugar, mas você também já foi um cara duro e vivia mendigando umas doses - isso antes de descolar esse empregozinho de professor, Você se recusa a lembrar, Você olha ela esmagar os limões com uma avidez esmagadora, há qualquer coisa de estranho nos lábios dela, uma flor amarela? Ela agora lava os copos um por um e os arruma direitinho sobre a prateleira de madeira acima da pia, Você mira agora o espelho bem a sua frente e vê um pedaço do seu rosto espremido entre duas garrafas de vodika vagabunda e você é só um pedaço de você mesmo, UM TOURO ABATIDO NO BALCÃO DO SEU BAR PREFERIDO - assim mesmo, bem maíusculo - Você e a sua morte que sempre lhe escapa, Uma bruxa de babydol negro baila agora no teto do Castelo e a sua atenção é toda dela até você cansar e olhar para o lado, assim, do nada, dois punks se instalam no balcão e iniciam uma conversa num dialeto estranho, Lhes é servida uma cerveja e eles começam a beber e a conversar enquanto o mundo se desmorona, Você olha como eles abusam da indumentária, parecendo dançarinos de xaxado, não ria, Você os encara com aquele seu sorriso irônico nos lábios e prepara-se para o comentário infeliz quando é salvo de um sôco inglês por aquele seu amigo que aprecia seus contos e que prefaciou aquele seu livro que nunca será publicado, Ele o convida para sentarem lá fora e vocês então se acomodam ao lado da velha árvore milenar que tem os braços cruzados por que está de mal com o mundo, Você acende um cigarro, cruza as pernas e espera este seu amigo iniciar a conversa, "Tava lendo teus contos, Mário, cara, tu escreves bem, vais fazer sucesso", Ele vive dizendo a mesma coisa e você parece gostar de ouvir ele dizer estas mesmas coisas, elas o encorajam, Você se envaidece, é como se tudo de repente voltasse a ter algum sentido, e ele continua, "És um escritor impressionista-realista", "Escritor impressionista-realista? Isso existe?" "Se não existe, acabo dce criar", "Tens cada uma", Você levanta o indicador e grita, "Karina, vê mais outra, filhota!" A noite vai chegando e vai mostrando sua gengiva negra, "Seu Maia" é o teu melhor trabalho", E ele faz um gestozinho com os dedos que aqui não dá pra explicar, "Conseguistes penetrar na alma de um velho, ele é todo um poema, um poema em prosa", Mas você está com sua atenção dispersa, voltada para os punks que bebem lá dentro e conversam num dialeto estranho enquanto o mundo se desmorona, Aí chega aquele seu outro amigo que também escreve, O Dean Moriarty amazonense, o mesmo que procurou Sal Paradise para que ele o ensinasse a escrever, e ele nem sonha com essa analogia, Ele ainda é jovem, um garoto aspirante a escritor também, mas que tem uma direita que às vezes te nocauteia e te deixa zonzo, Ele não pede licença e vai logo sentando à mesa, "Escuta isso aqui, Mário: estou escrevendo como um trem descarrilado, meu espírito é uma laranja descendo descabaçada ladeira abaixo, publicarei meus escritos solitários para dançarinos mancos, e não gosto de canetas ou cadernos de capa dura; escrivaninhas me fazem sentir um bonachão de óculos, meu caminho de pedras, se abre no suor assassino dos meus passos..." E ele continua lendo numa sofreguidão, num desespero sem fôlego, como um trem que descarrila mesmo e no final ele ginga seu corpo como um boxeador que prepara seu jab e pergunta, "Que achou?" "Bom, muito bom", "Meu caro, me fez lembrar os beatiniks", Comenta este outro amigo, "É, Miguel é o nosso Dean Moriary amazonense", Você acaba entregando o jogo e se levanta e vai até o banheiro, no caminho cumprimenta alguns rostos conhecidos, inclusive, o daquele carinha que vive insistindo para que você envie uns textos seus para um fanzine imundo que ele inventou, "Tá, vou mandar", Sozinho no banheiro, você mija como um tourinho valente, Você tenta unir uma anafitalina que se separou das outras e está amuadinha no canto e você consegue, mas acaba gerando um motim entre elas porque até as coisas nasceram para ficarem sozinhas, Na parede, uma frase anarquista e sem efeito, "FODA-SE O PAÍS", Você balança bem o seu pênis até que não sobre uma gota sequer que venha manchar sua calça bege que não combina nem um pouco com a sua camisa de polo laranja e foi Clarice que naquela tarde quente e grávida de sonhos lhe disse, "Até que és simpático, Mário Augusto, o problema é que não sabes combinar a calça com a blusa", Ahhh, as mulheres, são tudo de louvável no mundo, Você reflete, Volta para a mesa onde agora eles discutem cinema,
"Acho que deveríamos homenagear nessa edição da revista, o Sganzerla, o que acham?" "É, Sganzerla é uma boa", Você concorda, mas aí alguém diz, "Sganzerla? porra, quem é Sganzerla?

RETORNO DO DEGENERADO

Mil perdões, senhores! andei afastado sem postar nada, mas já estou de volta. Agradeço a visita de todos vocês. Sintam-se à vontade para comentar.

Meu carinho à todos!!

Márcio Santana