terça-feira, 26 de julho de 2011

CALDO QUENTE OU O CAPÍTULO DAS TRANSCRIÇÕES V

ÍINDIO. Caralho, sério mesmo? o cara virou um eremita praiano?
LORD. O Zeca tá ai pra não me deixar mentir, não é Zeca?
INDIO E aí, que fim levou o cara depois daquilo?
LORD. Bom, naquele mesmo ano, quando a poeira sentou, ele voltou pra Manaus e agora tá morando de favor no Novo Israel num desses casebres tristes nos fundos de um terreno baldio, e quando ele sai ás ruas a moçada chama ele de profeta e ele vive de doações e caridades prometendo que vai fazer chover e que todos vão ter água em abundância no bairro todo, tive lá com ele logo que voltou do seu exilio praiano...
ÍNDIO. exilio praiano, essa é boa...
NEGRO. cês querem ouvir uma coisa que eu tenho pra falar do Jander? é que um certo dia ao chegar no quartinho dele - um quartinho que ele morava lá no bairro da Compensa - eu o vi chorando de manhã logo cedo porque o mundo todo tava em ... você ligava a tv, você ouvia o rádio, lia o jornal, olhava pra Avenida Brasil as pessoas se matando, então quando eu vi o Jander chorando eu comecei a ver que o Jander não fazia parte desse mundo, sabe cara? o Jander é um ser, um anjo e ele tá aqui pra ensinar as pessoas a serem um pouquinho mais humanas, saca, ele é um anjo ensinando os homens a serem homens porque o cara que chora com tudo isso que tá aí, ele não cabe no plano do mundo, ele é muito mais do que um anjo, ele é ótimo, ele é ótimo, e quando ele vem a minha casa e rouba o meu tapete quando eu estou ausente, eu o amo cada vez mais...
INDIO. depois a gente vai pra ali, tá, gente? pra essa parte mais ampla do quintal...
LORD. aqui é massa, esse cheiro de quintal, dá até pra assar um peixinho...
ÍNDIO. depois a gente dá um jeito aí oh cara, temos madeiras aí, temos carvão também, falta só o peixe...
NEGRO. e o burguês tem uma indenizaçãozinha no bolso...
ÍNDIO. beleza, oh, então a gente une o útil ao agradável, cê une a sua grana, Burguês, com minha força de vontade...
LORD. e a fome dos demais...
ÍNDIO. a fome dos demais...
NEGRO. a fome dos demais...
ÍNDIO. e faremos desse sábado um dia agradável...
LORD. hoje é domingo porra...
ÍNDIO. domingo, é, hoje é domingo...
LORD. já tá bêbado, é?
ÍNDIO. enchi a cara ontem, desde a manhã cedinho...
NEGRO. bebes no sábado de manhã? Cara, o cara que bebe sábado de manhã logo cedo, é alcóolatra...
LORD. que papo é esse?
ÍNDIO. mas é o seguinte, na sexta as três da manhã eu tava com a mente desperta, acordei e fui no quarto da frente pegar um cigarro com o meu irmão, ele tinha acabado de chegar do Distrito e sempre quando ele chega do Distrito ele fica fumando um pretinho na varanda olhando pra lua, aí então eu fui pegar um cigarro com ele e ele estava com fome e com uma ressaquinha de um dia antes então ele me convidou pra tomarmos uma sopa na esquina e fomos e cê sabe que uma sopa pede uma cerveja e começou dali, ele tinha recebido seu ordenadinho do distritinho então começamos a beber e bebemos até o dia amanhecer desse sábado que passou que foi ontem, né cara, e quando foi onze da manhã a gente já tava bem tocado né cara, quer dizer, eu tava, ele não, ele nunca se toca, não para nunca, quando ele embala ele bebe até a morte, ele sim é alcóolatra...
NEGRO. a cerveja de madrugada ela já não é muito clara, tá ligado?
ÍNDIO. ela é como gasolina. a gasolina na madrugada ela é aquela concentração de átomos né? e durante o dia ela é mais pura porque os átomos se desprendem do seu núcleo.
NEGRO. vou começar a escrever sobre essa sacada tua, sabe, não, é sério, esse tipo de coisa não nasce do nada, começa pela gasolina depois a situação vai ficar de tal forma que acaba entrando no plano filosófico total.
Índio. pois é, botei um cartaz bem ali na entrada do barraco pra eu mesmo lembrar que não posso beber muito, recomendação médica, ahh, tá bem aqui, que não posso beber durante sete meses, vou buscar pra cês lerem...
LORD. Adicto só por hoje?
INDIO. Hann?
LORD. Adicto só por hoje, você?
ÍNDIO. ééé, bem...
BURGUÊS LENDO. Nada de bebidas alcóolicas durante sete meses ininterruptamente para o paciente em questão. (gargalhadas do Negro)
LORD. quem foi este médico?
NNEGRO. Quem foi este filhodaputa?
ÍNDIO. eu mesmo. eu em mim.
NEGRO. mas olha, se tu quiseres rasgar isso aqui (barulho de papel rasgando) vamos abortar essa ideia pavorosa que nunca será mesmo cumprida e voltar a ser feliz porque o melhor médico é o espelho da gente, cê chega com ele e diz, olha cara, pelo amor que eu tenho por ti mesmo, hoje cê não vai beber, mas se tu beber, amanhã tu volta ao espelho e repete de novo, olha cara, pelo amor que eu tenho por ti, hoje cê não vai beber e aí se fraquejar de novo cê volta ao espelho de novo...
ÍNDIO. aí vira um circulo vicioso, porra!
LORD. não cara, quando eu tô na drenagem de álcool não gosto de me olhar no espelho, não.
ÍNDIO. não, deixa eu ver... eu quando tava na maconha direto e isso nos anos oitenta, aqui rolou muita maconha, muita bola, optalidon, e tinha aquele outro lá que a gente aplicava na veia e ficava que nem um zumbi gelatinoso pelo bairro de Petrópolis, ah, lembrei, gotanergan, a gente aplicava esse troço na veia e eu tomei muito essa porra na veia quando tudo aqui era barro e poeira e tristeza também, maior onda, a gente ficava que nem geleia, acho que já contei essa história pro Burguês, e quando chegou assim numa certa parte da minha vida eu comecei a olhar pela minha janela o desespero dos pais levando seus filhos pros centros de recuperação, pros hospitais, pras igrejas, pra tentar tirar seus filhos daquilo porque foi uma epidemia de verdade no bairro todo...

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