quinta-feira, 25 de agosto de 2011

CALDO QUENTE OU O CAPÍTULO DAS TRANSCRIÇÕES - PARTE XXIII

(outra pausa. FraNZ queixando-se para as estrelas.)

LORD. sou um idiota, eu sei, mas sou um idiota jovem. tenho a pele clara e quando olho no espelho, eu vejo a imagem de um idiota jovem, não um velho de meia idade, eu então eu canto pra mim mesmo, e quando eu fico doido eu sinto que – minha boca tá muito seca mas não vou arruinar todo este instante mágico na terra com um gole de água, ai, ai, ai, ai, ai, e todo esse papo, eu meio que curto esse carinha e este seu medo de estar ficando velho que é um medo universal, e o meu medo é de não me sentir mais a altura da tarefa e ver minha inteligência se acabar porque eu já não me acho muito inteligente...

(GRAVADOR DISPARANDO SECO)

ÍNDIO. veja bem, eu não sou romancista como você, mas como já disse, me arrisco a escrever um romance chamado A Passarela dos Gatos.
LORD. PASSARELA DOS GATOS? interessante o título...
ÍNDIO. este livro, Burguês, é um livro sobre a corrupção e a psicologia humana. veja bem, não é ficção, é realidade. o mal dos escritores no Brasil é colocar bem assim, “ficção”, debaixo do título, como forma de se eximir da verdade. essa é a questão. eles se livram de qualquer contestação ou responsabilidade, ou melhor, se escondem atrás de uma palavra chamada “ficção” porque não querem responsabilidade com suas verdades.
LORD. achas errado essa postura, então?
ÍNDIO. mas é óbvio, cara! tu mesmo restringe o teu pensamento, tua maneira de pensar. tu tem medo porque no fundo tu és um católico, cristão, e todos vão te censurar, criticar, te achar um chato, como, como, como o, o, o, (Índio estalando os dedos impaciente) o, o , o...
LORD. poeta?
ÍNDIO. não, dramaturgo...
LORD. Brecht?
ÍNDIO. não, não, o dramaturgo grande do Brasil, o, o, o, do cafezinho...
LORD. Nelson Rodrigues?
ÍNDIO. sim, como Nelson Rodrigues fez, né cara. ele certo dia foi vaiado porque ele simplesmente mostrou a realidade com seus palavrões. na estreia de uma de suas peças, ele mesmo afirmou: minha obra de estreia – “perdoas por me traíres” - nunca teve dentro de seus trechos, palavrões, palavrões quem dizem são vocês, condenando as minhas peças, eu não. isso ele dizendo. por isso essa questão, cara: porque se esconder dentro de uma realidade que é sua, cara? dentro de um a realidade que é popular?
(musiquinha no fundo: brilha brilha brilha brilha brilha brilha brilha brilhááá)
LORD. então, este romance que estás escrevendo seria mesmo um, um...
ÍNDIO. A Passarela dos Gatos é um romance. nem comecei, não estou nem na metade, e não sei se terminarei, mas sei que será uma junção de acontecimentos, de fatos, de atos... a psicologia da realidade...
LORD. (coçando a cabeça bastante confuso) e a Carta para Manaus, cara? deixastes de lado?
ÍNDIO. não, não, não, falta, falta a janela primeiro. quando eu fizer a janela, essa janela aí mesmo!
LORD. ela vai te proporcionar o quê, esta janela?
ÍNDIO. eu vou poder abrir bem ali, ó, de madrugada eu vou poder abrir ela, ou melhor, poder abri-la e... poder olhar o horizonte, e só então escrever melhor a, a...
LORD. Carta Para Manaus?
ÍNDIO. Sim, A Carta para Manaus.
LORD. mas tá direcionado ainda, a, a, ao teu repúdio á cidade?
ÍNDIO. sem dúvida nenhuma! procede ainda a minha maneira de pensar essa cidade, nunca me eximi disso e você me conhece. eu, eu, eu particularmente, eu particularmente não suporto Manaus. Manaus éééé, no sentido social, ela éééé, algo assim, desestruturada, é algo assim, algo assim, irracional a ponto de, a ponto de, de sorver todo uma, todo um líquido ou então todo um material inorgânico que ela mesma não, não, não consegue expelir, entendeu? Manaus não consegue... esta cidade escrota, ridícula ela mesma não consegue se desfazer desse seu erro, de toda sua falha... eu não suporto essa cidade! eu vivo nessa cidade por questão... eu não sei se é uma questão de destino ou é por questão pessoal minha mesma, mas esta cidade simplesmente ela, ela, não tem a, a, proporção de definição como ela, ela, como posso dizer? como ela cria...mas não são essas as palavras, você me entende? é como se existisse uma falha geológica dentro da minha cabeça. mas sei que todo esse esquecimento, no fundo, eu sei que não é culpa do fumo, mas da cachaça.
LORD. mas eu acho que entendi, tipo, se você vivesse em outro lugar...
ÍNDIO. não, não, não é questão de outro lugar, Burguês, Manaus poderia até mesmo ser aprazível, poderia ser próspera é que ela, é que ela ééé tão mãe, que acaba sendo filha da mãe com seus filhos.
LORD. (rindo)
ÍNDIO. então é isso, cara...
LORD. mas ainda acho que há muitas lacunas nesta carta...
ÍNDIO. é claro, é claro que sim, por isso eu estou buscando mais coisas porque eu não quero ser superficial, eu quero ser bem profundo, entende?
LORD. e os mineiros, cara? queria que tu falasse dos mineiros. qual era o pensamento dos mineiros, bicho?

terça-feira, 23 de agosto de 2011

CALDO QUENTE OU O LIVRO DAS TRANSCRIÇÕES - PARTE XXII

*GRAVANDO
LORD. aqui, dando continuidade ao, ao...

(barulho de um papel se desembrulhando)

o gato chinês:
o gato dormindo é um chinês acordado
o gato cochilando é um chinês sorrindo
o gato acordado é um chinês assustado
estão calmos e caminham em leves passos
gato se escreve com g
e chinês com ch
gato chinês.
mas ambos usam longos bigodes espetados...
LORD. que engraçadinho. de quem é isto?
ÍNDIO. é da minha filha, Adriana. só ela consegue traduzir a letra dela. diz ela que, de agora em diante só vai escrever poesia pra mim.
LORD. (em silêncio.)
ÍNDIO. (cantando) mas tudo passa, tudo passará...
LORD. cara, eu odeio Moacir Franco, mas tudo bem...
ÍNDIO. é, Burguês, eu caminhei de noite de madrugada nas matas da Bolívia, sabe que, sabe que é você começar uma caminhada deeee, de repente você achar que não vai chegar vivo do outro lado? então era isso, bicho, eu era louco, sabe, guevarista, Mao-Tsetungiano... lia Karl Marx, saca? mas estou deixando de acreditar em tudo...
LORD. como assim?
ÍNDIO. é que eu tinha respostas pra tudo. hoje não mais, não tenho respostas pra nada...
LORD. e por quê?
ÍNDIO. não sei, envelheci.
LORD. que nada! trinta anos, pô, vai envelhecer assim?
ÍNDIO. mas envelheci.
LORD. tu achas que aos trinta anos já encerrou um ciclo?
ÍNDIO. não, hoje sou ligado a poesia, só isso... embora me arrisque a escrever um romance, não tão bom quanto os seus, que és um romancista nato, imagina...
LORD. não sei se o que escrevo é bom. ás vezes soa confuso demais, como a minha vida.
ÍNDIO. como a de todos nós, mas olha, imagina, se você fizer uma análise de você mesmo de uns anos pra cá, você vai perceber que o teu trabalho está muito mais evolutivo, muito mais elaborado, agora eu não sou a pessoa certa pra falar sobre isso, acho bom você escolher uma outra pessoa. mas o que eu queria te dizer não era exatamente isso, era outra coisa, mas esqueci. ando esquecendo de dizer as coisas...
LORD. eu meio que te curto, te acho um cara jovial, embora tenha a pele escura e um rosto sofrido, o que te deixa de certa forma, velho, mas ainda és um cara jovem por dentro.
ÍNDIO. você quer me encorajar com essas palavras, e eu até agradeço, só que envelheci sentado aqui nesse quintal olhando as estrelas e cuidando das minhas plantas. não sei se você reparou, mas tenho me dedicado as plantas do meu quintal, e aguá-las todas as manhãs é um exercício fascinante, uma espécie de prazer excretório, mas sei lá, tudo faz parecer que estou ficando um velho idiota, isso sim.
LORD. não acho que isso seja coisa pra se preocupar...
ÍNDIO. talvez seja a crise dos trinta...
LORD. isso é bobagem que inventam. lembro que aos vinte eu achava o suicídio uma coisa linda e necessária; que aos vinte e poucos eu deveria me suicidar...
ÍNDIO. sério?
LORD. pô, achava romântico demais o cara morrer aos vinte e poucos...
ÍNDIO. como os poetas do mal do século, é verdade...
LORD. mas afinal, acabamos descobrindo que somos todos covardes mesmo, que esse é o século da covardia e do apego as coisas materiais...
ÍNDIO. às vezes sinto que, que me esforço demais, um esforço em vão, que não vou conseguir mais ir adiante com as coisas... que estou mais e mais mergulhando numa lama...
LORD. só. sinto ás vezes isso também. mas só as vezes...
(pausa)
ÍNDIO. mais um peguinha?
LORD. sim, sim, em homenagem as estrelas que nos assistem...
ÍNDIO. montamos um palco para elas assistirem os nossos dramas humanos...
LORD. (dando um pega e tossindo bastante.)
ÍNDIO. te falei que essa é da boa? vai devagar, porra!
LORD. (prendendo a fumaça e fazendo uma careta medonha) o curioso é que, sabe cara, é que a respeito dessa conversa toda é que eu acho que nós dois, saca, tu e eu, estamos nos contendo, apesar de chapados, o que eu tô dizendo é que, a gente fica se cuidando um do outro que nem bons amigos de verdade...
ÍNDIO. é isso aí, tá certo. agora fica aí fumando mais um pouco que eu volto já.
LORD. mas aonde tu vais?
ÍNDIO. vou logo ali.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

CALDO QUENTE OU O CAPÍTULO DAS TRANSCRIÇOES - PARTE XXI

BARULHO DE CADEIRAS SE ARRASTANDO. MUDANÇA DE ESPAÇO. A SOMBRA FRESCA DAS ONZE HORAS SOBRE OS HERÓIS.

NEGRO. mas é sério, ó, cara, cheguei assim pra diretora e disse: olhe, eles estão pegando no meu pé, me chamando de preguiçoso como chamavam os negros no passado, e eu sou um negro azul e o meu coração é fraterno, mas se a senhora quer que eu chegue e saia no mesmo horário deles, não tem problema algum porque eu tenho um compromisso com esta escola e faço o que manda esta engrenagem, E PROLOLÓ PROLOLÓ PROLOLÓ, com toda aquela carga de dramaticidade divina, saca, e ela então me disse, professor, não se preocupe com que os outros dizem ou pensam ao seu respeito, volte pra suas crianças e pra suas flautinhas...
LORD. e este caldinho que não sai, hein?


TERCEIRO ENCONTRO – BAIRRO DE PETRÓPOLIS. 1998.
O LORD E O INDIO. QUINTAL DE ESTRELAS

LORD. noite estrelada pra caralho...
ÍNDIO. foi o fumo, Burguês, esse é do bom...
LORD. (com voz arrastada servindo cerveja) ca-ra-lho...
Índio. afffffi...
LORD. (minutos depois) tu acha que ao chegar aos quarenta anos, assim, tu vai agir também... vai ter esse comportamento, essa maneira aberta de pensar sobre as drogas assim como tu pensas hoje?
ÍNDIO. não, cara, esse lance é muito complexo, é muito complexo. o que que é droga? o que que é vício? isso é muito complexo, muito complexo...
LORD. porque cê vê, né cara, esses programas de tv, tá cheio de pessoas que são entrevistadas diariamente dizendo o contrário do que elas querem dizer. veja, eu não estou aqui fazendo apologia às drogas, não é isso não, eu conheço pessoas que fumam, pessoas maravilhosas que eu tiro o chapéu, pessoas que, sabe, é que, essas pessoas que chegam a uma determinada fase da vida e que olham pra trás e dizem covardemente, fiz isso, fiz aquilo, mas hoje minha vida é outra e eu condeno tudo que fiz no passado. isso não soa hipocrisia demais?
ÍNDIO. mas a maconha não é droga, porra, droga é essa maconha transgênica que andam vendendo por aí...
LORD. mas ela é hoje combatida...
ÍNDIO. na Holanda a maconha é liberada, aliás, há pubs que oferecem maconhas de um-dois-três graus, a maconha ela é, é, ela não, não deve ser classificada como droga, droga é o ópio, o lsd, o ecstasy, a heroína...
LORD. mas se tu tivesse oportunidade de tomar lsd tu tomaria?
ÍNDIO. provaria, Burguês, provaria porque sou consumidor nato. fumei maconha aos treze, cheirei cocaína aos quinze, tomei eritoss aos dezessete, me injetei com gotanergan e tonopan aos dezoito, eee, foi, provei o ecstasy aos vinte, e sabe Burguês, eu fui um cara que convivi com as drogas, saca? e eu não vejo porque... é lógico se a minha filha tivesse envolvida com drogas assim como o lsd, como a própria maconha, eu digo, olha, se você fumar maconha, eu acho uma boa, porque a maconha quebra, ela quebra todo o ritual de caretice e de pragmatismo dessa sociedade careta e portanto eu acho natural ela vir a usar maconha, não vejo porque não, minha filha é atriz, cara, ela, ela é, atriz, a minha filha é atriz, daqui a um tempo ela vai estar com quinze e ela vai usar maconha, todos usarão se já não tiverem usando, e aí? eu acho que a maconha é o precursor de ideias, ela é, é, um símbolo...o nosso problema é que nós estamos envolvidos com uma gama de interlocutores caretas, formados por seus pais da geração de sessenta, aqueles mesmos que eram adeptos do, do, do, dictarismo...
LORD. ditadura.
ÍNDIO. ditadura, é, ditadura, em que tudo era horroroso, a minissaia era horrorosa, a palavra merda era horrorosa, a forma de se sentar era horrorosa, entãooooo, entende, não tem nenhuma... assim... como posso dizer, uma critica contra eles porque eles estão velhos, daqui há pouco eles passam e aí nós entramos...
LORD. mas não ficou nenhum ressentimento aí, não? nenhum arrependimento?
ÍNDIO. não, não me arrependo de nada, não, agora tenho muito o que lastimar, né cara, como estava dizendo pra ti antes em algum outro momento em que sentamos juntos como agora, é que, já sofri muito, sofri coisas que, esses moleques da minha rua, do meu bairro não vou sofrer, não vão sofrer... eu sofri muito cara, um cara como eu que conviveu com a escuridão das estradas, mergulhado no breu, dependendo de uma carona pra chegar em outra capital, em outra cidade, tu e tua sombra num tempo que não é mais aquele em que pegar a estrada era motivo de algum sentido universal, e agora não há mais nada e tu não sabe como tu foi parar ali, naquela estrada, e tu é tua sombra seguindo em frente sempre sem um centavo pra comprar um pão, entendeu? e aí tu tem que trabalhar pra comprar um pão, e eu digo, é ruim, cara, mas é um aprendizado, saca, mas que eu não desejo pra ti isso, sabe, tipo, vai, participa, seja assim, seja assado, não, eu não desejo isso aí não, claro, se você pegar uma mochila nas costas pra sair pelo mundo isso é um problema que é só seu e eu fico daqui da minha varanda torcendo para que você tenha pego a estrada certa e saiba voltar porque um dia todos nós voltamos para o mesmo ponto...

FRANZ DEPOIS DE UM TEMPO OLHANDO COM PROFUNDIDADE AS ESTRELAS

e eu te digo isso porque a palavra dele é um tempero...

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

CALDO QUENTE OU O CAPÍTULO DAS TRANSCRIÇÕES - PARTE XX

HIPPIE. não, não, não dá pra viver engaiolado muito tempo num trampo, não.
ÍNDIO. quanto tempo tu trabalhou naquela Biblioteca?
HIPPIE. moleque, trampei um ano e meio naquilo lá. a biblioteca abria oito horas da manhã e eu chegava lá as seis. mas no fundo, gostava de lá. nas minhas horas vagas, vivia lendo, enfurnado ali dentro, tipo, lia pra esquecer a miséria que eu ganhava. os caras pagam muito mal seus funcionários.
ÍNDIO. mas fico pensando aqui que, apesar de bem remunerado, tem muita gente frustrada com seu trabalho, afim de chutar o balde mesmo, afim de cair fora, saca?
HIPPIE. olha aí o Zeca, ganhando dinheiro e fazendo o que gosta, e isso é um privilégio de poucos, cara...
NEGRO. mas aí tem que ver o seguinte, o espaço quem conquista é quem procura. por exemplo, o Jander é livre, trabalha muito bem com artesanato, e já tem uma cara, saca? o cara é super dedicado no que faz...
HIPPIE. sempre fui, cara, tudo e em qualquer coisa que eu faço.
ÍNDIO. isso tá parecendo aquele papo capitalista que diz, “não espere que a porta abra pra você, abra você mesmo a porta”, cê não acha, não, Zeca?
NEGRO. não, não, cara, acho que é a leitura da vida mesmo, saca? vamos imaginar que o Jander entende e sabe muito trabalhar com alimentos e com bar, e isto é fato, o cara é um exímio cozinheiro e já trabalhou com bar, quem não conhece o poeta, né cara? e este bar ou restaurante do Jander, ele não seria o privilégio de um conjunto de drogados e não seria também o privilégio de um conjunto de intelectuais, então ele teria o prazer de receber a,b,x,z e estaria fazendo aquilo que ele gosta, porra, esse cara trabalha com comida muito bem, cara, o cara cozinha pra caralho, o cara faz um arroz que não precisa de mais nada, então ele é livre pra ser feliz, e é sério, se ele tivesse hoje a condição de ter um espaço e regasse bem esse barato, seria do caralho, tá entendendo? seria do caralho, e se fosse por exemplo numa estrada, num sítio, onde o ambiente propiciaria a ele a criação, e é claro que tudo isso também tem algumas coisas envolvidas, acho que vocês conhecem, o prazer ele não se dá... por exemplo, eu entro oito e... um dia desses eu tava falando e eu tenho medo de falar isso e cair no campo da arrogância, sabe, cara, porque meus companheiros todos entram sete e todos saem as duas, TODOS OS MEUS COMPANHEIROS DO TRABALHO ENTRAM SETE E SAEM DUAS, intermediários e matutinos, mas eu entro as oito...
HIPPIE (cantando distraído e distante no fundo: tanto amor e tanta paixão...)
NEGRO. às treze e ponto eu tô liberado, mas meus companheiros ficam, todos meus companheiros trabalham dentro de uma sala de aula muito bem trabalhada, muito bem aconchegada, com ar condicionado, com painéis coloridos de todos os lados, e eu trabalho emparedado numa garagem, minha sala é uma garagem, parede aqui, parede aqui, e aqui uma, uma, um... portão de ferro, meus alunos eles podem entrar e sair a hora que eles quiserem, eles podem inclusive cada um pegar uma flauta e apitar na frente da sala daquela professora que tá dando aquela aula de matemática que é um saco onde só entra quem fizer silencio, eles tem a liberdade pra isso... mas já fiz um horário, estou de oito às onze, mas no ano passado eu entrava as sete, saía as dez e meia, ia pra faculdade, voltava sete horas e tinha que sair dez e meia e chegava uma hora da manhã em casa, assim que tava minha vida, um círculo servicioso, mas haviam as flautas e o brilho nos olhos daquelas crianças feitas de barro, poeira e asfalto duro...
ÍNDIO. vamo lá pra trás, vamo lá pra trás que o sol bateu.
LORD. e bateu mesmo, ô, esse lado meu aqui começou a doirar...
ÍNDIO. ummm, doirar...
NEGRO. sei que tô enchendo o saco de vocês, mas escutem, era assim assado que tava a minha vida a um tempo atrás...
LORD. e o que tu faz nessa escola mesmo? música? teatro? dá aula de que mesmo, Zeca?
NEGRO. eu tô com projeto, Burguês, não estou mais com com com, nada além, eu estou com um projeto de música, mas trabalhar música não como necessidade educacional, mas trabalhar música como lúdico, trabalhar música pra resgatar o menino da marginalidade e, e, e este projeto ganhou asas, e é do interesse da escola onde trabalho que este projeto ganhe asas, porque, por exemplo, semana que vem, a gente vai pra, pro... pra aquele hotel dos bacanas na estrada da Ponta Negra, Tropical, é, Hotel Tropical, onde eu vou apresentar um concerto de flautas com os meninos da periferia do último bairro de Manaus, saca? sabe, tem uma hora que eu adoraria, sabe, que você tivesse lá comigo, Burguês, trabalhando do meu lado, porque os outros professores me chamam de preguiçoso, que eu sou preguiçoso, cara, que eu sou um puxa saco e eu cai na merda de me efetivar, porque sou eu que me efetivo e não eles, você próprio me disse que sou autossuficiente e eu demorei pra digerir isso, mas acho que no fundo eu sou...
LORD. (dizendo com malemolência) sempre fostes Zeca, um cara autossuficiente, agora vamos sair do sol, ele me doira a pele.
INDIO. ummm... me doira a pele, agora pareceu o veado do Caetano cantando gosto de te ver ao sol, leãozinho, caminhando sob o sol...

terça-feira, 9 de agosto de 2011

CALDO QUENTE OU O CAPÍTULO DAS TRANSCRIÇÕES - PARTE XIX

ÍNDIO. quem tem um real aí pra comprar o cheiro verde e a pimenta?
NEGRO. o Burguês, ele sempre tem um real... o Burguês é assim mais eu entendo, daqui a pouco ele vai virar o bolso dele e vai aparecer uma nota de cinquenta.
HIPPIE. ainda mais que ele gosta de beber muito...
NEGRO. viiiixiiii...
LORD. bebo mesmo. lá na minha turma a moçada fica impressionada comigo, fuma e bebe professor? fuma e bebe professor? cara, fumo e bebo meeermo...
NEGRO (retirando um livro da bolsa e oferecendo a esposa do Índio.) olha, é pra filha de vocês.
ÍNDIO. nooosaa. Ana Clara Machado...
NEGRO. Ana Clara Machado, é.
ÍNDIO. pô, ela vai adorar.
NEGRO. lembra Jander que eu fiz o pluft?
HIPPIE. pô até perdi as contas.
NEGRO. Cara fiz tanto o pluft, fiz o pluft e fiz a bruxinha que era boa, e fizzzzz...
LORD. aí uma professora retardada vira pra mim e diz: assim professor, bebendo e fumando desse jeito, o senhor vai mais rápido pro céu.” “ah, não”, eu disse, “não quero ir pro céu, não, eu prefiro ir pro inferno...”
NEGRO. não tá servindo mais aqui vai pro céu, ah, que chato, cara...
LORD. deve ser um saco o céu.
HIPPIE. lembro que foi numa época quando a televisão prestava, é, passava aquele programa, além da imaginação, lembram? cara, aí passou uma vez um episódio baseado no texto do Hemingway, um conto dele, ó, cara, muito louco, muito louco muito louco esse do Hemingway, era um ladrão, a história de um ladrão, ó cara, e o cara assaltava, pá, fazia altos roubos e pá, e um dia ele assaltou um banco e quando ele foi pular o muro o policial, pou, deu um tiro nele e ele caiu do outro lado do muro, morto, né? aí já saiu a alma dele assim do corpo e tal né? aquele efeito preto e branco e tal aí veio um velho barbudão assim todo vestido de branco veio vindo assim na direção dele né, parou e disse: “meu amigo, você morreu!”, “porra, eu morri e tal, é?”, “você morreu e agora vai ter que vir comigo”, “mas pra onde é que você vai me levar?” “pra um lugar legal.” aí o ladrão vai e aí o cara chega assim tipo numa cidade, aí o velho fala pra ele: “ó, isso aí é tudo seu, cê pode fazer o que quiser.” “tudo é meu, tal?” “tudo é seu, você pode pegar as prostitutas, beber, se divertir.” aí o cara, pá, vai pro cassino, joga, bebe, come da melhor comida, se cerca das melhores mulheres, e aí o cara vai ficando entediado, ficando entediado, ficando entediado porque o cara era acostumado a roubar, né? aí ele pega lá uma prostituta e pergunta pra ela: “escuta minha filha, aqui não tem nem um banco pra assaltar, não?” “ih cara”, ela diz pra ele, “não existe isso aqui não, tudo aqui é seu.” e aí ele vai ficando entediado vai ficando entediado vai ficando entediado, até que chega o velho com ele outra vez e ele então reclama: “pô velho, é o seguinte, isso aqui tá muito legal, ganhei muito dinheiro no Cassino, as mulheres estão todas comigo, bebo do melhor whisky, só que pô, eu tô afim de um banco pra roubar, eu quero ação, quero ação.”, aí o velho diz: “rapá, não tem isso aqui não.” aí ele falou: “então eu quero ir pra outro lugar, eu quero ir pra lá, o senhor tá entendendo? quero um pouco de ação, quero ir pra lá, pro inferno, o senhor tá entendendo?” aí o velho diz: “pois o senhor está no inferno, tá entendendo? e o senhor não vai ter como sair daqui não, o senhor tá no inferno!” e acaba o cara saltando um grito desesperador ajoelhando-se aos pés do velho implorando pra ir pro inferno, saca?
LORD. isso é mesmo do Hemingway ou um roteiro maluco da tua cabeça?
HIPPIE. pode crer, é do Hemingway. Ernest Hemingway. o carinha lá dos sinos. o que estourou os próprios miolos.
NEGRO. cara, me fez lembrar a estória do urubu do Veropeso, a mesma parada, o Jander conta melhor essa estória.
HIPPIE: acho melhor tu contar.
NEGRO. ok, ok, parece que é o seguinte, tinha um urubu e ele vivia em um mercado, um mercado municipal lá de Belém, o mercado de Veropeso. assim, né, se tu jogasse pedra assim pra cima o urubu comia, né? ele gostava, vivia no furdunço mesmo, né cara, porra, levava uma vida desgraçada esse urubu, ainda tinha as pedradas que ele sofria dos moleques, mas esse urubu ia sobrevivendo estranhamente bem. aí teve um dia que um primo dele veio lá da bahia... como é o nome daquela baia que fica na frente da cidade de Belém? Bahia de... como é, Burguês, o nome daquela baía...?
LORD. não vou nem arriscar...
NEGRO. porra, cara, tem uma baía, uma baía, uma baía...
LORD. uma baía qualquer, Zeca.
NEGRO. tá, uma baía qualquer onde tudo era fartura né mermão. aí chegou esse primo de lá, um primo muito bem alimentado, todo no linho, apresentável, e, se sensibilizando com a miséria do outro, convidou este parente a passar uns dias lá na baía com ele: “vamo pra baía, primo? lá cê vai passar bem.” “então vamo!”, concordou o outro. chegando lá, no primeiro dia, o visitante começou a dar uns borros, ele foi logo chamando a atenção das urubuas, né cara, ele toda hora querendo ficar com as meninas e tá, no segundo dia muito jaraqui pra ele comer, muito peixe, tudo cara, tudo era dele que nem o ladrão de banco do Hemingway, depois, o primo bateu asa e voou, voltou dias depois e deu com o primo deitadão no tronco de uma árvore, muito estranho: “porra primo, cê não parece bem de saúde, que houve?” “não, aqui é bom, essa baía é boa, as meninas são boas, tá ligado? mas não tá tudo bem não, porque... eu gosto mesmo é do mercadão, gosto mesmo e da putaria, de tá levando pedrada, não tô legal aqui não... e naquele mesmo dia, ele bateu asas e voou, retornando feliz da vida, para o mercadão do Veropeso.” e é nesse sentido que o homem é um urubu universal, olha o Jander, por exemplo, o cara é inconstante, esse lance de tá trabalhando todo todo todo numa xerox ou atrás de um balcão de restaurante ali todo alinhado, todo quietinho não é muito do Jander, não...

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

CALDO QUENTE OU O CAPÍTULO DAS TRANSCRIÇÕES - PARTE VIII

NEGRO. um brinde, caralho. (sons de copos estalando)
HIPPIE. pois é, quando eu trabalhava na xerox da biblioteca do estado, a gerente sempre me via com esse bicho conversando, aí um dia a gerente chegou e disse: “tem um cara mal encarado com aparência de índio que vem aqui e rouba uns livros, conhece esse rapaz? porque sempre vejo você de conversinha com ele”. “não senhora, mas olhe, ele tem cara de que não presta mesmo”, eu disse.
ÍNDIO. eu lá nesse dia, né, ia pegar um livro do Drummond, autobiografia do Drummond, né, cara, e o Jander sempre facilitava as coisas pra mim, mas eu devolvia os livros, devolvia sim, mas confesso que já roubei alguns. então eu lá dando uma olhada nos livros na prateleira, cabeça baixa lendo a “Poética do Genocídio”, aí notei que essa senhora olhava pra mim do balcão e não era um olhar amigável, não.
HIPPIE. A poética do Genocídio, cara, muito doido esse livro, o cara dá porrada em Machado, no Alencar, no Guarani, ele dá-lhe porrada, dá-lhe porrada mesmo.
ÍNDIO. só que eu não queria exatamente aquele livro e eu expliquei pra ela e ela disse impaciente: “menino, então se decide, as pessoas quando vem á biblioteca já tem que ter o livro na cabeça”. “mas minha senhora – disse pra ela - eu tenho o livro na cabeça o problema é que não tem aqui, aí eu tenho que me virar com outro, não posso sair daqui de mãos abanando, sou viciado em livros.” aí ela foi lá trocar e voltou com o “Capital” do Karl Marx, beleza, só que tudo em espanhol. “minha senhora eu não falo em Espanhol.” eu disse pra ela, aumentando mais a sua raiva, seu ódio, sei lá o quê ela tinha de mim.
NEGRO. uma vez eu tava lá naquela Biblioteca e era um tempo assim que ninguém me dava livros, eu levava meu contracheque na, na, na... ninguém me dava livros, vivia enfurnado naquela biblioteca lendo e namorando há dias A perda do significado da vida e da liberdade, do Weber, e eu queria porque queria aquele livro pra mim de qualquer maneira, portanto fiquei a tarde inteira arquitetando um plano, mas bem, o livro nesse instante o livro já era meu, botei na cabeça que o livro já era meu, mas a porra é que eu tava sem bolsa e o livro não dava pra esconder na camisa, não dava pra botar em lugar nenhum, como é que eu vou fazer? me perguntava olhando pra aquele imenso relojão antigo tiquetaqueando na parede, se aproximando das cinco que é a hora que o prédio fecha, aí eu aproveitei o descuido do cara no balcão e encarei um maluco sentado bem ao lado de uma porta aberta e aí eu disse baixinho: “meu amigo, olha, vou tirar a xerox desse livro aqui na frente, tenho autorização.” e ele não disse nada. moleque, quando eu desci aquelas escadas correndo e atravessei aquela porta já alcançando a praça Heliodoro, a sensação que tive é que eu estava entrando no paraíso. mais adiante, fora do perigo, e respirando com alívio, disse pra mim mesmo: “porra cara, roubei a biblioteca.” eu tinha nas mãos, saca, o livro que me faria entender que nem a ciência e nem a filosofia e nem a religião poderiam dar um sentido a existência. um livro dessa grossura aqui, olha que maluco cara, tudo de que eu precisava pra conviver com os meus paradoxos, e isso eu não chamo de roubo, não, eu chamo de apropriação intelectual, por isso, não tenha nunca medo de afirmar que você algum dia já roubou um livro de uma biblioteca qualquer porque você não cometeu crime algum, só se for crime contra a intelectualidade alheia o que supostamente não existe nesse país.
HIPPIE. posso tirar minha blusa, cara?
ÍNDIO. tira, porra!
NEGRO. só não consegui roubar um que eu vi na faculdade, outra paixão minha, A Origem dos Mitos, um tijolão, cara, eu tu sabe que tô trabalhando com cultura, música, teatro e tal, essa coisa do mito mesmo, Burguês, eu tô olhando o mito com muita alegria porque o mito éééé, ele invade todas as penínsulas, todos os territórios, onde há um ser humano há um mito, e se vulgarizou o lance do mito porque parece que o mito é Michael Jackson, é Madona e o mito não é isso, inclusive a história do hebraico cristão é um mito, toda essa cristandade ocidental ela é um mito, toda crença, tudo tudo tudo é mito cara, e tem o mito mais recente que é confundido com a mentira, aí eu tô querendo trabalhar em cima disso, da desmistificação da da da, do teatro e da, da, da poesia, e da, porque parece que quem faz poesia é só o poeta, logo outra pessoa não pode fazer poesia, quem faz teatro éééé, são grupos específicos, quem faz música é músico...
ÍNDIO. e também concretizaram a poesia, né, a poesia parece que teve só um rumo e só uma origem, quando ela se estabelece como um trabalho onde haja uma beleza, né, uma sensibilidade e tá alcance de todos...
NEGRO. lembras, Jander, de um poema que uma vez ficaste lendo bem alto lá no Fecani que era bem assim, a poesia na flor no beija flor no elevador, aí depois desse dia eu comecei a olhar a poesia desse jeito, né cara, como um beija flor.
LORD. foi na vez que cê tava deitado assim no banco da praça e o Jander lá no púlpito declamando?
NEGRO. sim, eu tava lá morrendo de fome enquanto ele declamava, e esse cara conseguiu nesse dia descolar grana pra comida e uma namorada, tu lembras, Jander? A garota era filha de pescador e quando chegamos Jander e eu na casa dela, ela disse: “tem pacu frito ali!” aí eu disse: “poxa, não me mostra pacu não.” morto de fome, né cara, eu dividi, peguei a parte da cabeça que eu mais gosto, e o Jander ficou com o rabo, ela pegou um paneiro de farinha que tinha assim do lado e colocamos assim, muito tucupi né moleque, tem que ter tucupi no peixe, e comemos cara, comemos muito e quando eu tô dando a última colheirada no último caroço de farinha chega o pai dela do rio trazendo assim mais ou menos por baixo, uns seis tambaquis, né cara, uns seis tambaquis, e ela disse: “ai, meu Deus, o papai trouxe mais peixe, vamos comer!” aí eu disse: “não, eu tô bem, obrigado.” o Jander olhando pra mim com um olhão como se dissesse, “mas eu não tô cheio, não, quem foi que disse? aí ela preparou o tambaqui, mo-le-que, assim numa rapidez vap vap vap e botou pra fritar fritou fritou fritou e o Jander e o pai dela moleque dando pau e eu não aguentava mais e me escorei e botei pra contar causo né cara pra disfarçar porque já não aguentava mais de tanto comer peixe e fiquei sendo a gracinha da casa, né. a gente passava o dia inteiro com o Borboletras debaixo do braço no Fecani vendendo e enchendo a cara de cerveja, Borboletras na mão e cerveja na outra, e á noite, cambaleantes, noiados e com fome, a gente batia na porta da casa da figura pra comer peixe...
ÍNDIO. cara, que fim levou o Borboletras, hein cara? ainda tenho uma cópia do ¼ fechado...
NEGRO. não, esse livro quem tiver, ó, cara, me apresenta que eu quero ter a cópia, porque sou eu que faço a apresentação desse material e um dia eu queria reunir todas as coisas que eu faço.
ÍNDIO. privilegiado quem tem, né?
(voz da mulher do Índio no fundo: vocês querem peixe assado ou cozido?)
ÍNDIO. assado, assadinho, né gente?
NEGRO. cara...
LORD. foi jaraqui que cês compraram foi?
ÍNDIO. não, isso é curimatã, Burguês.
LORD. Curimatá, curimatá, né?
NEGRO. é, Burguês, é curimatá, sim.
ÍNDIO. o engraçado foi que o Burguês apontou pro mastruz e perguntou, que é isso aqui? eu respondi, é urtiga, caralho... (Gargalhadas)
NEGRO. o Burguês tá é dando uma de cu doce porque quando você vai pra casa dos outros você geralmente tenta esconder quem você é... cê assume outro personagem.
LORD. sério, cara?
NEGRO. dia desses lá em casa encarnou um personagem no Burguês e ele disse: olha, gente, cada um aqui tem sua identidade pessoal.
LORD. cozidinho não é melhor? o caldinho, cara, o caldinho quente, uma dilícia...
ESPOSA DO ÍNDIO. (cês é quem sabem...)
ÍNDIO. que que cês acham? cozido ou assado?
HIPPIE. cozido logo, tem o caldinho do Burguês...

terça-feira, 2 de agosto de 2011

CALDO QUENTE OU O CAPÍTULO DAS TRANSCRIÇÕES - PARTE VII

(silêncio. a vaca profana do Caetano tocando no fundo)

NEGRO. o Lino comprou uma moto agora também, é?
HIPPIE. uma moto beleza.
NEGRO. mas é uma moto ou uma mobilete?
HIPPIE. uma moto de verdade.
NEGRO. cara, ando pensando tanto numa motinha também, é, serio, inrinnnnnnnn (Negro onomatopeando o barulho da moto) pego ali a estrada do Aleixo e chego no trampo rapidinho.
HIPPIE. um barato mesmo.
NEGRO. porque não aguento mais, saca, esses ônibus compridos, cara, esses caras inventaram uma porra de ônibus comprido e fechado com ar condicionado e aquela porra ali pingando na tua cabeça toda hora, um inferno, saca, vaitefudê!
LORD. (voltando com as cervejas) lá na Panair, cara, fiquei indignado com o que rolou com uma senhora. ela tava com duas sacolas de peixe num ônibus lotado e ela queria saltar por trás porque não tinha condições de ela passar na borboleta de tão lotado que o ônibus estava, mas a cobradora não queria que ela saltasse por trás mesmo ela pagando, e o cheiro de peixe tava empesteando tudo e todos ali reclamando: “abre a porta pra senhora, filha da puta!” e eu engrossei o caldo também: “motora filha da puta, abre a porra dessa porta!”. acho que os peixes tavam eram podres, saca. a pressão foi tão grande que a porta se abriu e a velha cuspiu fora com sacola e tudo, mas ficou um cheiro horrível no ônibus fechado e eu queria poder matar um filho da puta desse que inventou de trazer pra cá essas porras de ônibus fechado e qual é dessa cobradora e desse motora de não deixar a senhora passar?
ÍNDIO. olha aí, ó! (índio mostrando a radiografia do coração)
HIPPIE. quê que é isso, caralho?
ÍNDIO. um coração, porra! exame que eu fiz pra ver se tava tudo bem com meu coração. dia desses tive a impressão que o meu coração ia dar pra trás. (Gargalhadas gerais)
LORD. e tá tudo bem?
ÍNDIO. a médica lá me explicou, “moço é o seguinte: o coração do senhor bate diferente. ele bate quatro por quatro.”
HIPPIE. sem lógica e sem nenhuma razão.
NEGRO. e essas marcas aqui de caneta? é o coração batendo?
NEGRO. é. ela disse que tenho que manter uma certa frequência, que não tá nada normal. aí ela só marcou aí mesmo, mas aí que fiz outros exames. cara, ela amarrou uns fios nas minhas pernas, nos meus pulsos, na minha cabeça, tortura, lógico, aí ligou um aparelho lá, cara...
HIPPIE. eletrocardiograma. mas tu tá bem, cara.
ÍNDIO. obrigado, cara.
HIPPIE. mas por quê tu faz esses exames aí, cara, se tu tá bem?
ÍNDIO. sou hipocondríaco, né cara. essa concepção de viver bem fica só pra motor de fusca 79 bem conservado.
HIPPIE. por quê tu não tomas uma cachacinha?
ÍNDIO. não tomo cachaça, cara, tô de mal com a cachaça. tomei muita cachaça na minha vida. desde os nove, tu saca?
HIPPIE. caraca!
ÍNDIO. do rocha. bebo cachaça desde os nove anos. meu estômago tava ficando um buraco.
HIPPIE. caraca.
ÍNDIO. tou fumando esse cigarro aqui.
HIPPIE. tabacão.
ÍNDIO. esse aqui não tem nicotina nem alcatrão, tabacão mesmo. vejo tudo azul.
LORD. tua filha é linda.
NEGRO. ah, cara, obrigado. Clara herdou a beleza de Clissi.
HIPPIE. linda mesmo, a molequinha.
NEGRO. não te falei que ia ter uma filha linda e livre? mas deixa eu falar agora: eu peguei o ônibus do Campus, aí sentou duas senhoras finíssimas num banco maior na minha frente, e quando elas viram que o ônibus começou a encher elas começaram juntas a cantar, cada uma com fone no ouvido: “começa o dia...”e toma Zezé de Camargo e Luciano nas alturas, no Caaampus...
LORD. eram bem estudantes da prefeitura, né bicho?
NEGRO. provavelmente, Burguês, mas olha só o lance, eu vinha bem atrás ouvindo a marmotagem, mas eu aguentei, aguentei, aguentei, quando chegou ali no Cemitério eu bati no banco delas pela primeira vez, nada, porque quando o ônibus tá em movimento, saca, sai baixo o som, mas quando dá aquela paradinha, é uma merda. na segunda vez já ali na Sefaz eu bati de novo e nada, “Começa o dia...” cada vez mais alto e irritante. na terceira vez dobrando na Bola do Coroado, eu disse: “ei minhas senhoras, por favor, esse ônibus aqui, ele é um ônibus, um ônibus de estudantes, alguns querem ler, eu quero ler, vocês não estão me deixando ler e eu tenho a porra de uma prova hoje”, elas olharam para mim dos pés á cabeça e sabe o que elas me disseram? “tá incomodado? saia do ônibus”. eu fiquei estático, pensando, sabe cara, elas ali olhando pra mim, com ódio de mim, quando o certo seria o contrário, elas me fuzilando com os olhos até eu saltar do ônibus, tudo muito assim, sabe... quem este pretinho pensa que é? sério, cara? tava escrito ali nos olhos delas.
ÍNDIO. já sei, aquele olhar tipo, ah se eu fosse o Hitler...
LORD. porra, quem manda tu ser neguinha...
HIPPIE. aí o negrinho, né, tava andando pela rua e encontrou uma lata escrito tinta branca para a pele, ele então passou a tal tinta na pele e ficou branquinho branquinho. chegando em casa todo contente, o moleque disse pra mãe dele: “manhê, virei branco.” no que a mãe lhe respondeu: “seu filho da puta!” e sentou-lhe um soco em seu rosto. ele então foi até o pai e disse: “paiê, fiquei branco, ó!” no que o pai lhe disse: “seu filho da puta” e também sentou-lhe um soco no garoto. o menino foi até o tio e disse: “tio, fiquei branco, ó!” a mesma coisa, o tio sentou-lhe um soco no garoto e disse: “seu filho da puta!” quando finalmente o infeliz encontrava-se sozinho no quarto, disse a si mesmo: “porra, não faz nem cinco minutos que virei branco e já estou puto de raiva desses negros filhos das putas...” (Gargalhadas gerais)
NEGRO. cara, se eu não te amasse tanto assim... mas é porque ultimamente o cara diz o seguinte, que lá no nordeste deu aquela pirema de... nada de grama, nada de chuva, nada de nada né, e as vacas tudo morrendo e um desses, éééé...como é que chamam, esses...senhores, donos de terras...como é, Burguês?
LORD. latifundiários...
NEGRO. isso, latifundiários, esses caras foram pro Paraguai e em vez deles trazerem muita alimentação de lá pras vacas, eles trouxeram um monte de raibãs verdes e aí as vacas passaram a enxergar tudo verde e passaram a se alimentar do verde...e eu nem sei porque estou contando isso, porque? alguém pode me dizer aqui porque eu estou contando isso?
HIPPIE. tu também tá bem, Zeca.
Negro. mas cês já sacaram quando alguém diz assim: “você tá bem, você tá bonito”, oh glória, que bem não faz né?