quinta-feira, 11 de agosto de 2011

CALDO QUENTE OU O CAPÍTULO DAS TRANSCRIÇÕES - PARTE XX

HIPPIE. não, não, não dá pra viver engaiolado muito tempo num trampo, não.
ÍNDIO. quanto tempo tu trabalhou naquela Biblioteca?
HIPPIE. moleque, trampei um ano e meio naquilo lá. a biblioteca abria oito horas da manhã e eu chegava lá as seis. mas no fundo, gostava de lá. nas minhas horas vagas, vivia lendo, enfurnado ali dentro, tipo, lia pra esquecer a miséria que eu ganhava. os caras pagam muito mal seus funcionários.
ÍNDIO. mas fico pensando aqui que, apesar de bem remunerado, tem muita gente frustrada com seu trabalho, afim de chutar o balde mesmo, afim de cair fora, saca?
HIPPIE. olha aí o Zeca, ganhando dinheiro e fazendo o que gosta, e isso é um privilégio de poucos, cara...
NEGRO. mas aí tem que ver o seguinte, o espaço quem conquista é quem procura. por exemplo, o Jander é livre, trabalha muito bem com artesanato, e já tem uma cara, saca? o cara é super dedicado no que faz...
HIPPIE. sempre fui, cara, tudo e em qualquer coisa que eu faço.
ÍNDIO. isso tá parecendo aquele papo capitalista que diz, “não espere que a porta abra pra você, abra você mesmo a porta”, cê não acha, não, Zeca?
NEGRO. não, não, cara, acho que é a leitura da vida mesmo, saca? vamos imaginar que o Jander entende e sabe muito trabalhar com alimentos e com bar, e isto é fato, o cara é um exímio cozinheiro e já trabalhou com bar, quem não conhece o poeta, né cara? e este bar ou restaurante do Jander, ele não seria o privilégio de um conjunto de drogados e não seria também o privilégio de um conjunto de intelectuais, então ele teria o prazer de receber a,b,x,z e estaria fazendo aquilo que ele gosta, porra, esse cara trabalha com comida muito bem, cara, o cara cozinha pra caralho, o cara faz um arroz que não precisa de mais nada, então ele é livre pra ser feliz, e é sério, se ele tivesse hoje a condição de ter um espaço e regasse bem esse barato, seria do caralho, tá entendendo? seria do caralho, e se fosse por exemplo numa estrada, num sítio, onde o ambiente propiciaria a ele a criação, e é claro que tudo isso também tem algumas coisas envolvidas, acho que vocês conhecem, o prazer ele não se dá... por exemplo, eu entro oito e... um dia desses eu tava falando e eu tenho medo de falar isso e cair no campo da arrogância, sabe, cara, porque meus companheiros todos entram sete e todos saem as duas, TODOS OS MEUS COMPANHEIROS DO TRABALHO ENTRAM SETE E SAEM DUAS, intermediários e matutinos, mas eu entro as oito...
HIPPIE (cantando distraído e distante no fundo: tanto amor e tanta paixão...)
NEGRO. às treze e ponto eu tô liberado, mas meus companheiros ficam, todos meus companheiros trabalham dentro de uma sala de aula muito bem trabalhada, muito bem aconchegada, com ar condicionado, com painéis coloridos de todos os lados, e eu trabalho emparedado numa garagem, minha sala é uma garagem, parede aqui, parede aqui, e aqui uma, uma, um... portão de ferro, meus alunos eles podem entrar e sair a hora que eles quiserem, eles podem inclusive cada um pegar uma flauta e apitar na frente da sala daquela professora que tá dando aquela aula de matemática que é um saco onde só entra quem fizer silencio, eles tem a liberdade pra isso... mas já fiz um horário, estou de oito às onze, mas no ano passado eu entrava as sete, saía as dez e meia, ia pra faculdade, voltava sete horas e tinha que sair dez e meia e chegava uma hora da manhã em casa, assim que tava minha vida, um círculo servicioso, mas haviam as flautas e o brilho nos olhos daquelas crianças feitas de barro, poeira e asfalto duro...
ÍNDIO. vamo lá pra trás, vamo lá pra trás que o sol bateu.
LORD. e bateu mesmo, ô, esse lado meu aqui começou a doirar...
ÍNDIO. ummm, doirar...
NEGRO. sei que tô enchendo o saco de vocês, mas escutem, era assim assado que tava a minha vida a um tempo atrás...
LORD. e o que tu faz nessa escola mesmo? música? teatro? dá aula de que mesmo, Zeca?
NEGRO. eu tô com projeto, Burguês, não estou mais com com com, nada além, eu estou com um projeto de música, mas trabalhar música não como necessidade educacional, mas trabalhar música como lúdico, trabalhar música pra resgatar o menino da marginalidade e, e, e este projeto ganhou asas, e é do interesse da escola onde trabalho que este projeto ganhe asas, porque, por exemplo, semana que vem, a gente vai pra, pro... pra aquele hotel dos bacanas na estrada da Ponta Negra, Tropical, é, Hotel Tropical, onde eu vou apresentar um concerto de flautas com os meninos da periferia do último bairro de Manaus, saca? sabe, tem uma hora que eu adoraria, sabe, que você tivesse lá comigo, Burguês, trabalhando do meu lado, porque os outros professores me chamam de preguiçoso, que eu sou preguiçoso, cara, que eu sou um puxa saco e eu cai na merda de me efetivar, porque sou eu que me efetivo e não eles, você próprio me disse que sou autossuficiente e eu demorei pra digerir isso, mas acho que no fundo eu sou...
LORD. (dizendo com malemolência) sempre fostes Zeca, um cara autossuficiente, agora vamos sair do sol, ele me doira a pele.
INDIO. ummm... me doira a pele, agora pareceu o veado do Caetano cantando gosto de te ver ao sol, leãozinho, caminhando sob o sol...

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