terça-feira, 23 de agosto de 2011

CALDO QUENTE OU O LIVRO DAS TRANSCRIÇÕES - PARTE XXII

*GRAVANDO
LORD. aqui, dando continuidade ao, ao...

(barulho de um papel se desembrulhando)

o gato chinês:
o gato dormindo é um chinês acordado
o gato cochilando é um chinês sorrindo
o gato acordado é um chinês assustado
estão calmos e caminham em leves passos
gato se escreve com g
e chinês com ch
gato chinês.
mas ambos usam longos bigodes espetados...
LORD. que engraçadinho. de quem é isto?
ÍNDIO. é da minha filha, Adriana. só ela consegue traduzir a letra dela. diz ela que, de agora em diante só vai escrever poesia pra mim.
LORD. (em silêncio.)
ÍNDIO. (cantando) mas tudo passa, tudo passará...
LORD. cara, eu odeio Moacir Franco, mas tudo bem...
ÍNDIO. é, Burguês, eu caminhei de noite de madrugada nas matas da Bolívia, sabe que, sabe que é você começar uma caminhada deeee, de repente você achar que não vai chegar vivo do outro lado? então era isso, bicho, eu era louco, sabe, guevarista, Mao-Tsetungiano... lia Karl Marx, saca? mas estou deixando de acreditar em tudo...
LORD. como assim?
ÍNDIO. é que eu tinha respostas pra tudo. hoje não mais, não tenho respostas pra nada...
LORD. e por quê?
ÍNDIO. não sei, envelheci.
LORD. que nada! trinta anos, pô, vai envelhecer assim?
ÍNDIO. mas envelheci.
LORD. tu achas que aos trinta anos já encerrou um ciclo?
ÍNDIO. não, hoje sou ligado a poesia, só isso... embora me arrisque a escrever um romance, não tão bom quanto os seus, que és um romancista nato, imagina...
LORD. não sei se o que escrevo é bom. ás vezes soa confuso demais, como a minha vida.
ÍNDIO. como a de todos nós, mas olha, imagina, se você fizer uma análise de você mesmo de uns anos pra cá, você vai perceber que o teu trabalho está muito mais evolutivo, muito mais elaborado, agora eu não sou a pessoa certa pra falar sobre isso, acho bom você escolher uma outra pessoa. mas o que eu queria te dizer não era exatamente isso, era outra coisa, mas esqueci. ando esquecendo de dizer as coisas...
LORD. eu meio que te curto, te acho um cara jovial, embora tenha a pele escura e um rosto sofrido, o que te deixa de certa forma, velho, mas ainda és um cara jovem por dentro.
ÍNDIO. você quer me encorajar com essas palavras, e eu até agradeço, só que envelheci sentado aqui nesse quintal olhando as estrelas e cuidando das minhas plantas. não sei se você reparou, mas tenho me dedicado as plantas do meu quintal, e aguá-las todas as manhãs é um exercício fascinante, uma espécie de prazer excretório, mas sei lá, tudo faz parecer que estou ficando um velho idiota, isso sim.
LORD. não acho que isso seja coisa pra se preocupar...
ÍNDIO. talvez seja a crise dos trinta...
LORD. isso é bobagem que inventam. lembro que aos vinte eu achava o suicídio uma coisa linda e necessária; que aos vinte e poucos eu deveria me suicidar...
ÍNDIO. sério?
LORD. pô, achava romântico demais o cara morrer aos vinte e poucos...
ÍNDIO. como os poetas do mal do século, é verdade...
LORD. mas afinal, acabamos descobrindo que somos todos covardes mesmo, que esse é o século da covardia e do apego as coisas materiais...
ÍNDIO. às vezes sinto que, que me esforço demais, um esforço em vão, que não vou conseguir mais ir adiante com as coisas... que estou mais e mais mergulhando numa lama...
LORD. só. sinto ás vezes isso também. mas só as vezes...
(pausa)
ÍNDIO. mais um peguinha?
LORD. sim, sim, em homenagem as estrelas que nos assistem...
ÍNDIO. montamos um palco para elas assistirem os nossos dramas humanos...
LORD. (dando um pega e tossindo bastante.)
ÍNDIO. te falei que essa é da boa? vai devagar, porra!
LORD. (prendendo a fumaça e fazendo uma careta medonha) o curioso é que, sabe cara, é que a respeito dessa conversa toda é que eu acho que nós dois, saca, tu e eu, estamos nos contendo, apesar de chapados, o que eu tô dizendo é que, a gente fica se cuidando um do outro que nem bons amigos de verdade...
ÍNDIO. é isso aí, tá certo. agora fica aí fumando mais um pouco que eu volto já.
LORD. mas aonde tu vais?
ÍNDIO. vou logo ali.

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