terça-feira, 16 de agosto de 2011

CALDO QUENTE OU O CAPÍTULO DAS TRANSCRIÇOES - PARTE XXI

BARULHO DE CADEIRAS SE ARRASTANDO. MUDANÇA DE ESPAÇO. A SOMBRA FRESCA DAS ONZE HORAS SOBRE OS HERÓIS.

NEGRO. mas é sério, ó, cara, cheguei assim pra diretora e disse: olhe, eles estão pegando no meu pé, me chamando de preguiçoso como chamavam os negros no passado, e eu sou um negro azul e o meu coração é fraterno, mas se a senhora quer que eu chegue e saia no mesmo horário deles, não tem problema algum porque eu tenho um compromisso com esta escola e faço o que manda esta engrenagem, E PROLOLÓ PROLOLÓ PROLOLÓ, com toda aquela carga de dramaticidade divina, saca, e ela então me disse, professor, não se preocupe com que os outros dizem ou pensam ao seu respeito, volte pra suas crianças e pra suas flautinhas...
LORD. e este caldinho que não sai, hein?


TERCEIRO ENCONTRO – BAIRRO DE PETRÓPOLIS. 1998.
O LORD E O INDIO. QUINTAL DE ESTRELAS

LORD. noite estrelada pra caralho...
ÍNDIO. foi o fumo, Burguês, esse é do bom...
LORD. (com voz arrastada servindo cerveja) ca-ra-lho...
Índio. afffffi...
LORD. (minutos depois) tu acha que ao chegar aos quarenta anos, assim, tu vai agir também... vai ter esse comportamento, essa maneira aberta de pensar sobre as drogas assim como tu pensas hoje?
ÍNDIO. não, cara, esse lance é muito complexo, é muito complexo. o que que é droga? o que que é vício? isso é muito complexo, muito complexo...
LORD. porque cê vê, né cara, esses programas de tv, tá cheio de pessoas que são entrevistadas diariamente dizendo o contrário do que elas querem dizer. veja, eu não estou aqui fazendo apologia às drogas, não é isso não, eu conheço pessoas que fumam, pessoas maravilhosas que eu tiro o chapéu, pessoas que, sabe, é que, essas pessoas que chegam a uma determinada fase da vida e que olham pra trás e dizem covardemente, fiz isso, fiz aquilo, mas hoje minha vida é outra e eu condeno tudo que fiz no passado. isso não soa hipocrisia demais?
ÍNDIO. mas a maconha não é droga, porra, droga é essa maconha transgênica que andam vendendo por aí...
LORD. mas ela é hoje combatida...
ÍNDIO. na Holanda a maconha é liberada, aliás, há pubs que oferecem maconhas de um-dois-três graus, a maconha ela é, é, ela não, não deve ser classificada como droga, droga é o ópio, o lsd, o ecstasy, a heroína...
LORD. mas se tu tivesse oportunidade de tomar lsd tu tomaria?
ÍNDIO. provaria, Burguês, provaria porque sou consumidor nato. fumei maconha aos treze, cheirei cocaína aos quinze, tomei eritoss aos dezessete, me injetei com gotanergan e tonopan aos dezoito, eee, foi, provei o ecstasy aos vinte, e sabe Burguês, eu fui um cara que convivi com as drogas, saca? e eu não vejo porque... é lógico se a minha filha tivesse envolvida com drogas assim como o lsd, como a própria maconha, eu digo, olha, se você fumar maconha, eu acho uma boa, porque a maconha quebra, ela quebra todo o ritual de caretice e de pragmatismo dessa sociedade careta e portanto eu acho natural ela vir a usar maconha, não vejo porque não, minha filha é atriz, cara, ela, ela é, atriz, a minha filha é atriz, daqui a um tempo ela vai estar com quinze e ela vai usar maconha, todos usarão se já não tiverem usando, e aí? eu acho que a maconha é o precursor de ideias, ela é, é, um símbolo...o nosso problema é que nós estamos envolvidos com uma gama de interlocutores caretas, formados por seus pais da geração de sessenta, aqueles mesmos que eram adeptos do, do, do, dictarismo...
LORD. ditadura.
ÍNDIO. ditadura, é, ditadura, em que tudo era horroroso, a minissaia era horrorosa, a palavra merda era horrorosa, a forma de se sentar era horrorosa, entãooooo, entende, não tem nenhuma... assim... como posso dizer, uma critica contra eles porque eles estão velhos, daqui há pouco eles passam e aí nós entramos...
LORD. mas não ficou nenhum ressentimento aí, não? nenhum arrependimento?
ÍNDIO. não, não me arrependo de nada, não, agora tenho muito o que lastimar, né cara, como estava dizendo pra ti antes em algum outro momento em que sentamos juntos como agora, é que, já sofri muito, sofri coisas que, esses moleques da minha rua, do meu bairro não vou sofrer, não vão sofrer... eu sofri muito cara, um cara como eu que conviveu com a escuridão das estradas, mergulhado no breu, dependendo de uma carona pra chegar em outra capital, em outra cidade, tu e tua sombra num tempo que não é mais aquele em que pegar a estrada era motivo de algum sentido universal, e agora não há mais nada e tu não sabe como tu foi parar ali, naquela estrada, e tu é tua sombra seguindo em frente sempre sem um centavo pra comprar um pão, entendeu? e aí tu tem que trabalhar pra comprar um pão, e eu digo, é ruim, cara, mas é um aprendizado, saca, mas que eu não desejo pra ti isso, sabe, tipo, vai, participa, seja assim, seja assado, não, eu não desejo isso aí não, claro, se você pegar uma mochila nas costas pra sair pelo mundo isso é um problema que é só seu e eu fico daqui da minha varanda torcendo para que você tenha pego a estrada certa e saiba voltar porque um dia todos nós voltamos para o mesmo ponto...

FRANZ DEPOIS DE UM TEMPO OLHANDO COM PROFUNDIDADE AS ESTRELAS

e eu te digo isso porque a palavra dele é um tempero...

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