terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

III - NÃO SE ESCREVE MAIS DESSE JEITO, MÁRIO AUGUSTO. DEIXE DE SER TÃO SENTIMENTAL. SE FAZER DE VITIMAZINHA.

VEIO A NOITE.Perambulei pelos arredores da Praça. Saudei alguns carinhas. Fumei um cigarro sozinho olhando a juventude triste e seca da minha cidade. Olhava também os prédios baixos, feios e mancos. Os tilintares dos bares não me comovem mais. Fico assim mesmo, quando a noite cai. Terrivelmente deprimido. Seco. Novamente a sombra oca e seca e triste de Jeanne Moreau vagando sem rumo. Passando em frente a “Juir Nuit” com suas luzes azuis lacrimais piscando no fundo; olhando os homens nas vitrines. Como num sonho abandonado e doce. A tristeza é doce. Por que será que escritores são tristes? NÃO TODOS, é claro. Há aqueles que são felizes. Os que estão em perfeita comunhão com Deus. Os que estão por cima. Os degenerados, não. Os amaldiçoados, como bem afirmou a velha insolente da livraria. Dessa vez é “Around Midnight” que ouço tocar bem lá no fundo de mim. O trompete doce-amargo de Miles Davis. A síntese do belo e do triste. Caminho. Dou murros em ponta de faca. Manaus, á noite, é uma apunhalada no coração.
Não se escreve mais desse jeito, Mário Augusto. Deixe de ser tão sentimental. Se fazer de vitimazinha.
Entrei no Castelo. Arrancaram o grande espelho de narciso. Me abanquei frente ao abismo branco de cal gélido e morto que ocupou todo aquele espaço, agora vazio. Não verei mais meu rosto. Nunca mais saberei o que havia do outro lado daquele velho espelho além de mim. Não é justo. Eu pertencia aquele espelho. Eu morava dentro daquele enorme espelho atrás das garrafas desempregadas. Desde que me confrontei com aquele espelho pela primeira vez ali naquele bar, eu sabia que minha outra alma repousava ali dentro. Bêbada. Terna. Cálida. Flutuante. Sabia que eu estava lá. Sempre estive. “Uma cerveja, meu poeta?” “Sim, mas bem gelada, querido”. Bebo minha primeira cerveja sem ser amolado com as velhas perguntas de sempre cheias de malícia e interesse falso: “O que andas escrevendo, Mário Augusto?” Ás vezes digo-lhes que estou escrevendo um grande romance. Outras vezes, só pra sacanear, digo que estou escrevendo um livro de autoajuda chamado "O PODER DA VONTADE". Ás vezes digo que estou com bloqueios. Soa elegante. Chic. Outras vezes não respondo nada. Bebo minha cerveja e pronto. Que as formigas se encarreguem das folhas enquanto os besouros giram em torno da luz. Aí o celular tocou: Era Álex do outro lado da linha. Fungava:
“O que foi querido?”
“O bolo, não sei fazer bolo...”
“O que foi que houve com o bolo, meu querido?”
“Ele encolheu, queimou, sei lá...” E fungava como uma mocinha do outro lado. Depois eu é que era o sentimental.
“Queria te fazer uma surpresinha, mas faço tudo errado.”
“O mundo não vai acabar por causa de um bolo, meu querido. Controle-se.” Fiquei ouvindo ele fungar. Estava tendo uma de suas crises de ardor juvenil.
“Vai demorar muito por aí?”
“Só o tempo de terminar esta cerveja”.
“Você parece que não me entende ás vezes.”
“É claro que entendo, meu lindo.”
“Não, não entende, não.”
“Entendo sim.”
“Não, não entende não.” ‘
“Tá bem, não entendo.”
“Você é egoísta, como os outros.”
“Sou egoísta, tá bom, reconheço.”
“Viu só?”
“Vi.“
“Então eu estou certo em dizer que você é egoísta?”
“Está sim, Álex.”
“Então repita: EU SOU EGOISTA.”
“Não ferra, pô.”
“Diz.”
“Quer parar?”
“Diz, anda!”
“Ok. Eu sou egoísta.”
“Não ouvi direito.”
“EU SOU EGOISTA.”
“Viu só? Você mesmo reconhece que é uma pessoa egoísta.”
“Você me obrigou. Você ligou só pra isso?”
“Não.”
“Sabe qual é o seu problema, Álex?”
“Qual é?”
“É que você anda colocando muito fermento no bolo.” Ia dizer-lhe outra coisa.
“Vá se ferrar, Mário Augusto.” Desligou. Não demorou nem meio minuto, o celular tocou de novo. Era ele:
“Grosso! Por que desligou?”
“Não fui eu quem desligou. Foi você.”
“Um dia quando chegares aqui não vai sentir nem o meu cheiro. Terei evaporado da tua vida.”
E dessa vez desligou pra valer. Um ano juntos e eu conhecia tão bem aquele garoto. Já me sentia responsável por ele. Como um pai que ama incestuosamente seu filho. Voltando a parede branca. Ou melhor. Basta. Paguei a cerveja e deixei o Castelo. Continuei minha ronda noturna. Dali ha pouco eu descia a Avenida Eduardo Ribeiro dobrando a 10 de julho, indo em direção ao bar do Lusitano outra vez. Ao me aproximar, dei logo de cara com a mesa dos célebres doutores. A figura da tese estava sentada bem ao centro com seus colares indígenas em volta de seu pescoço fino e comprido. Sentei por ali e fiquei olhando pra eles. No mínimo aguardavam a chegada do celebrado escritor. Bebiam com elegância e provavelmente discutiam literatura. Eu podia ouvi-los dali. Com exceção da sulista, eu não sabia quem eram os outros. Mas eles precisavam saber quem eu era. Ela também. Não sei se posso chamar isso de arrogância. Talvez. Sou mesmo arrogante. O fato é que levantei-me e fui até a mesa deles com os meus livros. Cumprimentei-os educadamente, mas eles não deram muita atenção. Mirei na direção da sulista e mostrei-lhe o meu livro:
“Se me permite, sou escritor e este aqui é o meu livro.” Ela me lançou um sorriso azedo e continuou a falar com o amigo ao seu lado. De perto notei que seus olhos eram bem azuis. Um azul amargo. Como o azul de um céu amargo. Fiquei ali falando sobre o livro, mas ela não deu muita importância não. Insisti mais um pouco. Aí ela disse: “Outra hora, querido.” Aquilo me enrolou as tripas. “Por que não agora?” O amigo dela ao lado me lançou um olhar severo e disse: “Por que estamos conversando sobre outras coisas, você nos dá licença?” Ouvi quando alguém falou sobre Chardin e a necessidade de eliminar de vez com os receios do pantheísmo literário. Um papo elevado. Eu já tinha ouvido falar de Chardin. Me senti novamente um clown idiota. Voltei pra minha mesa como um cão atropelado. Meu interior gania. O português novamente por ali como uma sombra penada, tornou a perguntar:
“Então Gajo, o que aprontaste com a velha esta tarde?”
“Ah, é o senhor, seu Orlando, que susto. Nada, não aprontei nada. Aquela velha é que não bate bem, já disse.”
“É verdade. Dizem que ela matou o marido e escondeu o corpo no freezer.” Olhei surpreso para o português. Logo eu, um maravilhado por “Crime e Castigo”. Matar pode ser uma arte refinadíssima. Um tema apaixonante. Tudo de que um escritor precisa é se informar e escrever. Umas boas aulas de anatomia humana aliada a uma boa dosagem de psicologia Raskolnikoviana. E pronto! Sempre desejei escrever uma estória policial. Com requintes de crueldade. Essa cidade está precisando disso. De um assassino frio. Altamente periculoso. Algum tempo atrás criei dois personagens que infelizmente não vingaram. Um chamava-se Mirella – uma serial killer adolescente que usava seus próprios saltos afiadíssimos para matar suas vítimas. E o outro chamava-se Roberval. Um senhor de meia idade que matava putas e transformava a carne delas em pastéis pra vender. Dois criminosos e seus crimes insolúveis. Dignos de uma cidade que não se soluciona crime algum. Eles ainda devem estar em alguma parte do meu cérebro criminoso. Amadurecendo seus crimes. Quando eles tiverem prontos de verdade, eu os deixarei sair. Os libertarei. Apaixona-me a ideia de um assassino perfeito em meio á loucura, ao calor e a incoerência dessa provinciazinha ingenuamente soberba. Um romance policial ainda é uma obsessão minha.
“Mais uma, gajo?” “Sim, seu Orlando, por favor.” Foi aí então que no meio daquela cerveja, vejo o escritor aclamado juntar-se ao grupo. Aquela seria minha chance. No fundo sou um cara teimoso. Obstinado por coisas que o leitor deve estar achando tolas demais. Mas é que quando encuco com uma coisa na cabeça só sossego quando consigo o que quero. Por mais que sejam mesmo bobas, tolas, como deve estar supondo mesmo o leitor. O que eu queria tão somente naquela noite era me valorizar e ser valorizado. Me vingar daquela mesa. Pronto. Me aproximei deles novamente. Dessa vez fui direto ao alvo. Peguei o por trás. Na catraca:
“Assisti sua palestra. Gostei muito do seu último livro.” Dizia a mais absoluta verdade. Há caras que mentem. A mentira é uma verdade dissimulada. “Este é o meu livro.” O escritor de verdade pegou o livro. Pôs-se a ler a orelha. O seu cãozinho fiel parou de conversar um pouco e olhou pra nós. A mesa toda silenciou um pouco quando ele disse: “Interessante, o seu livro. Está vendendo?” “Sim, estou.” “Por que não fazemos o seguinte.” Propôs. Pegou sua enorme bolsa, abriu-a, apanhou lá de dentro um livro e disse: “Por que não fazemos uma troca? Você leva este meu último aqui, e eu fico com este seu.” “Pô, será um prazer.” “Então assina.” Assinei. Ele também. A mesa estava em silencio. Vi um deles olhando para mim com mais respeito. A sulista sorria dessa vez com seus olhos bem azulados. Cumprimentei o celebrado escritor e o deixei em paz. Voltei pra minha mesa e pra minha cerveja. Se ele ia ler ou não, eu nunca saberei. Não era mais problema meu. Respirei fundo com ar de missão cumprida. O ego menos machucado. Não sabia exatamente o que eu queria provar com aquilo. Um mero capricho besta de escritor, sei lá. Só sabia que eu agora, de algum modo, existia.
Era quase onze quando deixei o Bar do Lusitano. Sentado nos fundos do coletivo, o rosto encostado na janela, sentia agora o frescor do vento noturno soprar em meu rosto. Fechei meus olhos e por alguma razão me vi chegando em casa; abrindo a porta do quarto devagarinho. Álex dormindo como um anjo. Ali, ao meu alcance: tão perto e tão longe das tempestades da vida. Uma parte de suas coxas insinuantes descobertas. Beijo-lhe aquela parte do corpo. Em seguida – devagarzinho – a altura de suas ancas leitosas. Beijo-lhe também o dorso. A nuca. Cheiro seus cabelos louiros e ele então desperta. Sorri. O sorriso mais doce, mais puro e mais lindo. Apago a luz. Fazemos amor. Depois dormimos.

Sabe, no fundo, o amor compensa tudo. Não via a hora de chegar...

"O nascimento do amor" (Botticelli)