quinta-feira, 4 de agosto de 2011

CALDO QUENTE OU O CAPÍTULO DAS TRANSCRIÇÕES - PARTE VIII

NEGRO. um brinde, caralho. (sons de copos estalando)
HIPPIE. pois é, quando eu trabalhava na xerox da biblioteca do estado, a gerente sempre me via com esse bicho conversando, aí um dia a gerente chegou e disse: “tem um cara mal encarado com aparência de índio que vem aqui e rouba uns livros, conhece esse rapaz? porque sempre vejo você de conversinha com ele”. “não senhora, mas olhe, ele tem cara de que não presta mesmo”, eu disse.
ÍNDIO. eu lá nesse dia, né, ia pegar um livro do Drummond, autobiografia do Drummond, né, cara, e o Jander sempre facilitava as coisas pra mim, mas eu devolvia os livros, devolvia sim, mas confesso que já roubei alguns. então eu lá dando uma olhada nos livros na prateleira, cabeça baixa lendo a “Poética do Genocídio”, aí notei que essa senhora olhava pra mim do balcão e não era um olhar amigável, não.
HIPPIE. A poética do Genocídio, cara, muito doido esse livro, o cara dá porrada em Machado, no Alencar, no Guarani, ele dá-lhe porrada, dá-lhe porrada mesmo.
ÍNDIO. só que eu não queria exatamente aquele livro e eu expliquei pra ela e ela disse impaciente: “menino, então se decide, as pessoas quando vem á biblioteca já tem que ter o livro na cabeça”. “mas minha senhora – disse pra ela - eu tenho o livro na cabeça o problema é que não tem aqui, aí eu tenho que me virar com outro, não posso sair daqui de mãos abanando, sou viciado em livros.” aí ela foi lá trocar e voltou com o “Capital” do Karl Marx, beleza, só que tudo em espanhol. “minha senhora eu não falo em Espanhol.” eu disse pra ela, aumentando mais a sua raiva, seu ódio, sei lá o quê ela tinha de mim.
NEGRO. uma vez eu tava lá naquela Biblioteca e era um tempo assim que ninguém me dava livros, eu levava meu contracheque na, na, na... ninguém me dava livros, vivia enfurnado naquela biblioteca lendo e namorando há dias A perda do significado da vida e da liberdade, do Weber, e eu queria porque queria aquele livro pra mim de qualquer maneira, portanto fiquei a tarde inteira arquitetando um plano, mas bem, o livro nesse instante o livro já era meu, botei na cabeça que o livro já era meu, mas a porra é que eu tava sem bolsa e o livro não dava pra esconder na camisa, não dava pra botar em lugar nenhum, como é que eu vou fazer? me perguntava olhando pra aquele imenso relojão antigo tiquetaqueando na parede, se aproximando das cinco que é a hora que o prédio fecha, aí eu aproveitei o descuido do cara no balcão e encarei um maluco sentado bem ao lado de uma porta aberta e aí eu disse baixinho: “meu amigo, olha, vou tirar a xerox desse livro aqui na frente, tenho autorização.” e ele não disse nada. moleque, quando eu desci aquelas escadas correndo e atravessei aquela porta já alcançando a praça Heliodoro, a sensação que tive é que eu estava entrando no paraíso. mais adiante, fora do perigo, e respirando com alívio, disse pra mim mesmo: “porra cara, roubei a biblioteca.” eu tinha nas mãos, saca, o livro que me faria entender que nem a ciência e nem a filosofia e nem a religião poderiam dar um sentido a existência. um livro dessa grossura aqui, olha que maluco cara, tudo de que eu precisava pra conviver com os meus paradoxos, e isso eu não chamo de roubo, não, eu chamo de apropriação intelectual, por isso, não tenha nunca medo de afirmar que você algum dia já roubou um livro de uma biblioteca qualquer porque você não cometeu crime algum, só se for crime contra a intelectualidade alheia o que supostamente não existe nesse país.
HIPPIE. posso tirar minha blusa, cara?
ÍNDIO. tira, porra!
NEGRO. só não consegui roubar um que eu vi na faculdade, outra paixão minha, A Origem dos Mitos, um tijolão, cara, eu tu sabe que tô trabalhando com cultura, música, teatro e tal, essa coisa do mito mesmo, Burguês, eu tô olhando o mito com muita alegria porque o mito éééé, ele invade todas as penínsulas, todos os territórios, onde há um ser humano há um mito, e se vulgarizou o lance do mito porque parece que o mito é Michael Jackson, é Madona e o mito não é isso, inclusive a história do hebraico cristão é um mito, toda essa cristandade ocidental ela é um mito, toda crença, tudo tudo tudo é mito cara, e tem o mito mais recente que é confundido com a mentira, aí eu tô querendo trabalhar em cima disso, da desmistificação da da da, do teatro e da, da, da poesia, e da, porque parece que quem faz poesia é só o poeta, logo outra pessoa não pode fazer poesia, quem faz teatro éééé, são grupos específicos, quem faz música é músico...
ÍNDIO. e também concretizaram a poesia, né, a poesia parece que teve só um rumo e só uma origem, quando ela se estabelece como um trabalho onde haja uma beleza, né, uma sensibilidade e tá alcance de todos...
NEGRO. lembras, Jander, de um poema que uma vez ficaste lendo bem alto lá no Fecani que era bem assim, a poesia na flor no beija flor no elevador, aí depois desse dia eu comecei a olhar a poesia desse jeito, né cara, como um beija flor.
LORD. foi na vez que cê tava deitado assim no banco da praça e o Jander lá no púlpito declamando?
NEGRO. sim, eu tava lá morrendo de fome enquanto ele declamava, e esse cara conseguiu nesse dia descolar grana pra comida e uma namorada, tu lembras, Jander? A garota era filha de pescador e quando chegamos Jander e eu na casa dela, ela disse: “tem pacu frito ali!” aí eu disse: “poxa, não me mostra pacu não.” morto de fome, né cara, eu dividi, peguei a parte da cabeça que eu mais gosto, e o Jander ficou com o rabo, ela pegou um paneiro de farinha que tinha assim do lado e colocamos assim, muito tucupi né moleque, tem que ter tucupi no peixe, e comemos cara, comemos muito e quando eu tô dando a última colheirada no último caroço de farinha chega o pai dela do rio trazendo assim mais ou menos por baixo, uns seis tambaquis, né cara, uns seis tambaquis, e ela disse: “ai, meu Deus, o papai trouxe mais peixe, vamos comer!” aí eu disse: “não, eu tô bem, obrigado.” o Jander olhando pra mim com um olhão como se dissesse, “mas eu não tô cheio, não, quem foi que disse? aí ela preparou o tambaqui, mo-le-que, assim numa rapidez vap vap vap e botou pra fritar fritou fritou fritou e o Jander e o pai dela moleque dando pau e eu não aguentava mais e me escorei e botei pra contar causo né cara pra disfarçar porque já não aguentava mais de tanto comer peixe e fiquei sendo a gracinha da casa, né. a gente passava o dia inteiro com o Borboletras debaixo do braço no Fecani vendendo e enchendo a cara de cerveja, Borboletras na mão e cerveja na outra, e á noite, cambaleantes, noiados e com fome, a gente batia na porta da casa da figura pra comer peixe...
ÍNDIO. cara, que fim levou o Borboletras, hein cara? ainda tenho uma cópia do ¼ fechado...
NEGRO. não, esse livro quem tiver, ó, cara, me apresenta que eu quero ter a cópia, porque sou eu que faço a apresentação desse material e um dia eu queria reunir todas as coisas que eu faço.
ÍNDIO. privilegiado quem tem, né?
(voz da mulher do Índio no fundo: vocês querem peixe assado ou cozido?)
ÍNDIO. assado, assadinho, né gente?
NEGRO. cara...
LORD. foi jaraqui que cês compraram foi?
ÍNDIO. não, isso é curimatã, Burguês.
LORD. Curimatá, curimatá, né?
NEGRO. é, Burguês, é curimatá, sim.
ÍNDIO. o engraçado foi que o Burguês apontou pro mastruz e perguntou, que é isso aqui? eu respondi, é urtiga, caralho... (Gargalhadas)
NEGRO. o Burguês tá é dando uma de cu doce porque quando você vai pra casa dos outros você geralmente tenta esconder quem você é... cê assume outro personagem.
LORD. sério, cara?
NEGRO. dia desses lá em casa encarnou um personagem no Burguês e ele disse: olha, gente, cada um aqui tem sua identidade pessoal.
LORD. cozidinho não é melhor? o caldinho, cara, o caldinho quente, uma dilícia...
ESPOSA DO ÍNDIO. (cês é quem sabem...)
ÍNDIO. que que cês acham? cozido ou assado?
HIPPIE. cozido logo, tem o caldinho do Burguês...

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