quinta-feira, 28 de julho de 2011

CALDO QUENTE OU O CAPÍTULO DAS TRANSCRIÇÕES VI -

(Interrupção com a chegada do Hippie)

HIPPIE. já cheguei. não disse que vinha? é que amanheci o dia bebendo...
NEGRO. você pare de besteira...
ÍNDIO. prazerzaço, cara, fica a vontade, pega um copo pra ti, tem cerveja pra caralho aqui...
HIPPIE. pode crer...
ÍNDIO. continuando moçada, aí que vi os caras tudo pedindo ajuda e aí eu pensei, porra não vou pra porra nenhuma de igreja ou de clínica não, vou é pra Porto Velho...
NEGRO. porra, Porto Velho? fazer o quê em Porto velho, véio?
ÍNDIO. tentar a vida no garimpo, é, um primo meu foi pra lá e se deu bem, então eu fui, saca?
NEGRO. e aí?
ÍINDIO. aí que me fodi, né cara, peguei malária, cancro no pau, o caralho a quatro, voltei com as mãos vazias e mais pobre, mas encontrei minha porta de saída, sabe, acho que o cara que entra nessa onda de entorpecente tem que saber a porta de saída e não vacilar, não vamo muito longe não, olha o exemplo do Lobão e daquele cantorzinho lá que engolia tudo, não lembro do nome dele agora, o Lobão, cara, pirou na década de oitenta, o cara experimentou de tudo e nunca baixou numa clínica de recuperação, enquanto esse outro aí decaiu de tal maneira fatalística que começou a engolir isqueiro, canetas, clipes, grampos e até papéis, sei lá, acho que ele queria montar uma espécie de, de, de uma livraria dentro dele, faltou só um livro né cara, pra ele engolir...
LORD. mas o crack é foda, né cara, na época do Lobão acho que nem rolava essa onda de crack.
NEGRO. talvez se esse filhadaputa tivesse engolido um livro ele teria parado com essa marmotagem, né bicho, porque o livro ia, ia, ia, éééé... o livro ia alimentá-lo intelectualmente, e tu sabes que, que o que é ingerido vai pra mente, de modo que se esse garoto tivesse engolido o Paulo Freire ele ia defecar a Pedagogia do Oprimido.
ÍNDIO. ou então ia ter literalmente uma puta dor de barriga ou teria morrido, o fato é que ele não ia escapar de um desses três, aí eu penso, como seria se o estômago dele assimilasse vias tubos digestivos toda a teoria do Paulo Freire?
NEGRO. porra, o cara que engole a Pedagogia do Oprimido vai se tornar um...
ÍNDIO. um enloquente, né cara?
NEGRO. ou então ele poderia vir pra Manaus e engolir os livros do Burguês e aqui fundar uma seita satanista...
LORD. ou então ter uma congestão...
ÍNDIO. eu só não indicaria pra ele os Poetas Ocultos... cara aquilo ali ia deixar ele falando com lacunas e gagueiras.

(Hippie retornando com a cerveja)

HIPPIE. não cortando vocês, mas cara, amanheci com o Lino na casa dele bebendo cerveja, fumando maconha e ouvindo Maysa num fonógrafo.
LORD. Fonógrafo?
HIPPIE. é, o cara comprou num antiquário um fonógrafo, uma maravilha...
LORD. e vocês ouviram Maysa no fonógrafo? que massa...
HIPPIE. sim, e cês sabem que quando o Lino ouve Maysa ele chora compulsivamente e eu não sei o que se passa no interior dele, mas quando o cara ouve Maysa ele chora feito uma criança e isso desde o tempo em que o conheci pintando paredes, ele evoluiu pra publicidade e continua gostando de Maysa e chorando quando ouve ela cantar.
NEGRO. porra, ainda mais num fonógrafo.
ÍNDIO. Maysa é muita fossa, ô, até eu choro, cara.
NEGRO. e tu Burguês, choras quando ouves alguma música?
LORD. choro quando ouço as Bachianas do Villa Lobos.
NEGRO. mas tu és um Burguês mesmo, caralho...
ÍNDIO (pensando olhando pro céu) não lembro agora o que me faz chorar...
HIPPIE. cara, sei que o Lino tá muito bem, trabalha agora com publicidade.
NEGRO. largou os pincéis?
HIPPIE. não, ele continua pintando uns quadros aí, mas cês sabem que aqui é foda pra sobreviver da arte.
LORD. em todo lugar, cara, o cara morre de fome.
HIPPIE. mas aqui é muito pior, saca.
ÍNDIO. aqui é o cu do mundo, mermão.
HIPPIE. lembras do Hanneman, o pintor?
LORD. o que matou os avós a tesouradas e depois se matou?
HIPPIE. pois sim. o cara era um gênio. puta de um artista. viveu e morreu como um marginal. morava nos porões do Palácio da Sete. a mãe era zeladora e servia cafezinho lá. o cara pintava com a alma. olha os quadros do cara. vem canadense só pra olhar. morreu fodido. e hoje essa classe de artistas filhas das putas dessa cidade vivem exaltando o cara. quando ele era vivo os caras cuspiam quando ele passava na rua poeirenta de Manaus pingando tinta da sua pele negra de índio.
LORD. mas isso já foi há cinquenta anos, meu mermão...
HIPPIE. e tu achas que mudou alguma coisa?
LORD. não mudou não?
HIPPIE. mudou porra nenhuma...o cara pra ser reconhecido tem que se deixar colonizar. quem matou Hanneman foi essa gente escrota dessa cidade escrota que agora lhe rendem tributos depois do cara morto.
NEGRO. urrrruuuuuu, não é mentira não, véio.
LORD. (em silencio) ok. cheque.
HIPPIE. e mate, mermão. vamo parar com essa porra de colonizar a arte pra ter que agradar a um público ignorante que só aprecia a arte quando ela é bonitinha. o artista é livre.
LORD. depois dessa, vou pegar mais cervejas...

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