terça-feira, 5 de julho de 2011

03 PUNKS E UM SÔCO INGLÊS

Você está agora no balcão do seu bar preferido, bebendo sua costumeira cerveja quando ela se vira pra você e diz, "Vou vender o Castelo, Mário, e vai ser ainda este ano", A cerveja nessa hora entra enviesada garganta abaixo, a música na Juke Box é uma porcaria, e esses roqueirozinhos de merda em tua volta, "Não dá mais, maninho, são nove anos pelejando com isso aqui, ah, cansei," Você pede outra cerveja e ela vem taciturna, cabisbaixa, deslizando no balcão, "E o que vai ser disso aqui?" Você pergunta a ela enquanto ela enche o seu copo até à borda, "Tem um médico aí interessado em comprar este prédio, quer fazer disso aqui uma clínica," "Porra, uma clínica?" "É, uma clínica, uma clínica psiquiatrica", Você fica um pouco calado, pensativo, você vê pessoas entrando e saindo pela portinhola do Castelo, logo, logo, o lugar vai estar entupidinho de gente, como sangue circulando numa artéria de concreto porque é assim que é o Castelo às sextas-feiras, "Vão demolir tudo isso com certeza", "Acho que sim", "Você pensativo de novo - sobrancelhas levantadas, "Mas se demolirem o Castelo vão estar demolindo um pedaço dessa avenida, dessa cidade, dessas pessoas todas aqui, de mim", Você começa a delirar, o àlcool chegando ao córtex, "Que se dane, nada fica muito tempo em pé e eu estou cansada disso aqui", Você então dá de ombros dizendo, "Sendo assim, você é a dona do Castelo mesmo", Aí você e ela ficam calados para sempre, então ela se afasta e vai até a pia esmagar os limões que é pra cachacinha dos caras duros que frequentam o lugar, mas você também já foi um cara duro e vivia mendigando umas doses - isso antes de descolar esse empregozinho de professor, Você se recusa a lembrar, Você olha ela esmagar os limões com uma avidez esmagadora, há qualquer coisa de estranho nos lábios dela, uma flor amarela? Ela agora lava os copos um por um e os arruma direitinho sobre a prateleira de madeira acima da pia, Você mira agora o espelho bem a sua frente e vê um pedaço do seu rosto espremido entre duas garrafas de vodika vagabunda e você é só um pedaço de você mesmo, UM TOURO ABATIDO NO BALCÃO DO SEU BAR PREFERIDO - assim mesmo, bem maíusculo - Você e a sua morte que sempre lhe escapa, Uma bruxa de babydol negro baila agora no teto do Castelo e a sua atenção é toda dela até você cansar e olhar para o lado, assim, do nada, dois punks se instalam no balcão e iniciam uma conversa num dialeto estranho, Lhes é servida uma cerveja e eles começam a beber e a conversar enquanto o mundo se desmorona, Você olha como eles abusam da indumentária, parecendo dançarinos de xaxado, não ria, Você os encara com aquele seu sorriso irônico nos lábios e prepara-se para o comentário infeliz quando é salvo de um sôco inglês por aquele seu amigo que aprecia seus contos e que prefaciou aquele seu livro que nunca será publicado, Ele o convida para sentarem lá fora e vocês então se acomodam ao lado da velha árvore milenar que tem os braços cruzados por que está de mal com o mundo, Você acende um cigarro, cruza as pernas e espera este seu amigo iniciar a conversa, "Tava lendo teus contos, Mário, cara, tu escreves bem, vais fazer sucesso", Ele vive dizendo a mesma coisa e você parece gostar de ouvir ele dizer estas mesmas coisas, elas o encorajam, Você se envaidece, é como se tudo de repente voltasse a ter algum sentido, e ele continua, "És um escritor impressionista-realista", "Escritor impressionista-realista? Isso existe?" "Se não existe, acabo dce criar", "Tens cada uma", Você levanta o indicador e grita, "Karina, vê mais outra, filhota!" A noite vai chegando e vai mostrando sua gengiva negra, "Seu Maia" é o teu melhor trabalho", E ele faz um gestozinho com os dedos que aqui não dá pra explicar, "Conseguistes penetrar na alma de um velho, ele é todo um poema, um poema em prosa", Mas você está com sua atenção dispersa, voltada para os punks que bebem lá dentro e conversam num dialeto estranho enquanto o mundo se desmorona, Aí chega aquele seu outro amigo que também escreve, O Dean Moriarty amazonense, o mesmo que procurou Sal Paradise para que ele o ensinasse a escrever, e ele nem sonha com essa analogia, Ele ainda é jovem, um garoto aspirante a escritor também, mas que tem uma direita que às vezes te nocauteia e te deixa zonzo, Ele não pede licença e vai logo sentando à mesa, "Escuta isso aqui, Mário: estou escrevendo como um trem descarrilado, meu espírito é uma laranja descendo descabaçada ladeira abaixo, publicarei meus escritos solitários para dançarinos mancos, e não gosto de canetas ou cadernos de capa dura; escrivaninhas me fazem sentir um bonachão de óculos, meu caminho de pedras, se abre no suor assassino dos meus passos..." E ele continua lendo numa sofreguidão, num desespero sem fôlego, como um trem que descarrila mesmo e no final ele ginga seu corpo como um boxeador que prepara seu jab e pergunta, "Que achou?" "Bom, muito bom", "Meu caro, me fez lembrar os beatiniks", Comenta este outro amigo, "É, Miguel é o nosso Dean Moriary amazonense", Você acaba entregando o jogo e se levanta e vai até o banheiro, no caminho cumprimenta alguns rostos conhecidos, inclusive, o daquele carinha que vive insistindo para que você envie uns textos seus para um fanzine imundo que ele inventou, "Tá, vou mandar", Sozinho no banheiro, você mija como um tourinho valente, Você tenta unir uma anafitalina que se separou das outras e está amuadinha no canto e você consegue, mas acaba gerando um motim entre elas porque até as coisas nasceram para ficarem sozinhas, Na parede, uma frase anarquista e sem efeito, "FODA-SE O PAÍS", Você balança bem o seu pênis até que não sobre uma gota sequer que venha manchar sua calça bege que não combina nem um pouco com a sua camisa de polo laranja e foi Clarice que naquela tarde quente e grávida de sonhos lhe disse, "Até que és simpático, Mário Augusto, o problema é que não sabes combinar a calça com a blusa", Ahhh, as mulheres, são tudo de louvável no mundo, Você reflete, Volta para a mesa onde agora eles discutem cinema,
"Acho que deveríamos homenagear nessa edição da revista, o Sganzerla, o que acham?" "É, Sganzerla é uma boa", Você concorda, mas aí alguém diz, "Sganzerla? porra, quem é Sganzerla?

Um comentário:

  1. Grande tretorno! Intenso e forte, me faz lembrar de imagens loucas! Perfeito!

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