quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

O ANIVERSÁRIO



Naquela noite após o trabalho, fui abraçar Jordana, uma velha amiga escritora que fazia aniversário. Cheguei numa hora meio imprópria, pois que ela discutia com seu namorado: “porra, Jairo – vamos chamá-lo assim – quando andavas atrás de mim e eu te esnobava, ficávamos até tarde da noite bebendo, agora que te dou atenção e carinho queres ir cedo para casa. Hoje é o meu aniversário, porra!!” O cara dela lá caladäo, sem dizer nada. “As Folhas de Relva” de Whitman em seu colo. Um volumäo. Outro dia andava ele ás voltas com Pessoa. O cara até que lia. Pedia uma cerveja. Brindamos. Ela pareceu contente em me ver, mas seus olhos estavam tristes. Era seu aniversário e alguém queria apagar sua vela. Quando ele foi ao banheiro, ela virou seu copo e então me disse: “É justo, Mário? No dia do meu aniversário cismou em ir cedo para casa.” “Deixa ele ir, você fica. Vamos beber até os nossos fígados gritarem.” Ela fez um esforcinho e sorriu. Na outra mesa, uns aprendizes de junkies bebiam e discutiam alto. Havia uma aura pesada demais naquele bar. Senti isso. Bom, ele voltou do banheiro decidido mesmo em ir embora. Comecei a folhear as Relvas de Whitman pra disfarçar enquanto eles discutiam. Ele queria mesmo azedar o vatapá. Ai chegou o Carcamano, outro amigo meu, muito popular por ali e que também escrevia uns troços interessantes. Não lembro como chegamos até Bucowsky, só sei que ele insistia em nos dizer que o alterego do escritor era mais canalha que o seu criador. Literatura americana demais na mesa. Mas os olhinhos dela se acenderam. É que ela havia se tornado recentemente uma leitora voraz de Bucowsky. “Me explica isso melhor!” Perguntou ela ao Carcamano. O cara dela levantou-se imperativo e ela escureceu como uma folha. “70% dos leitores de Bucowsky são mulheres, sabiam?” Disse eu. “Sério?” Espantou-se ela. “Sério.” Sério nada. Inventei aquilo que era pra chamar sua atenção e vê-la sorrir em seu aniversário. Os aniversários são geralmente deprimentes, acho que é por isso que Deus não faz aniversário. Pensei este absurdo. Aquilo ali tava ficando azedo demais. Foi então que os aprendizes de junkies da mesa vizinha resolveram se engalfinhar e o bar veio abaixo. O troço foi feio porque vi um deles sangrando pelo nariz e gritando, “Porra! Ele torceu meu nariz com o meu alicate! Ele torceu meu nariz com o meu alicate!”
Mudamos para um outro bar. Neste outro bar tocava Caetano e ela ainda insistia para ele ficar. Em vão. Ele entregou os molhos das chaves da casa e deixou o lugar. Ficamos ali olhando ele se afastar e sumir. Ela foi escurecendo devagar. Então me veio esta frase tola á cabeça: “quando os homens partem, suas mulheres ficam negras como as folhas.” “que nada!” Jordana virou-se para nós estalando os dedos como uma cigana: “Vamos beber até os nossos fígados gritarem!”E ficamos ali os três bebendo e conversando. Ela nos disse que começaria um trabalho novo como garçonete num bar vip e que estava bastante animada. Falou de sua última crônica e de alguns poemas novos que havia escrito e também nos contou pela enésima vez o episódio engraçado com o francês voador, um gringo que ela havia conhecido e que despencara do terceiro andar da janela de um bar hotel no centro. Rimos um bocado. “Por que não escreves sobre isso?” Sugeri. Ela então pediu um papel e uma caneta e dessa vez rabiscou alguma coisa:
O francês voador
Conheci o tal francês no antigo Macintosh.Bebemos e cheiramos um bocado. Lá pelas tantas, secamos os nossos copos e subimos para o quarto onde o fedorento estava hospedado. Essa história de que francês não gosta de tomar banho não é mentira não, o cara era fedorento mesmo, mas estava bancando o rock todo. Me deitei na cama e me espreguicei bem gostoso como uma gata e pus-me a sua espera. Ele lá, sentado na janela do quarto, noiadão. Foi tudo muito rápido, assim, entre um fechar e abrir dos olhos e ele não tava mais lá, o porra do francês. Havia despencado dali e eu não pude fazer nada, a não ser rir, caí na risada porque entre o riso e a tragédia acho que ainda prefiro o riso e portanto eu apenas ri, ri e ri, vendo ele lá estatalado, mas vivo. Foi um custo tirá-lo de lá, o francês era gordo e fedia muito.
Na manhã seguinte, o gerente nos cobrou o prejuízo e alguma explicação. Não colou não a história de que uma toalha molhada havia caído dalí e feito um estrago daqueles. Saímos bem cedo, eu e o francês para comprar telhas novas. Nossas cabeças ainda giravam pesadas e o sol espocava dentro de nossas íris dilatadas...”
“Só um esboço. Nada sério.” Ela disse. “Gostei.” Guardei com carinho o escrito no bolso. Voltamos a conversar sobre variadas coisas, mas depois os assuntos se esvaziaram como os nossos copos e como os nossos bolsos e ela ficou muito triste e pensativa. Apagou seu último cigarro nas botas novas e pretas de Carcamano e nos disse que já ia embora. “Tá cedo minha querida.” Não disse nada. Levantou-se e partiu atravessando a rua com seus passos lânguidos de bêbada abatida. Combativa, ainda esguivava-se da morte e das armadilhas do amor. “Cara, vou reescrever o primeiro capítulo do "Á mesa com os escarnenecedores". Não ficou legal. Sinto isso. Ando bebendo pouco ou estou com a porra do bloqueio.” Falou Carcamano querendo animar a mesa e a noite, mas já não seria a mesma coisa. Vendo ela partir, foi as minha vez de escurecer. Sabe, certas amizades são mesmo pra valer. De repente me dou conta dessa amizade que é verdadeira e paternal. Não sei bem explicar. Acho até que não precisa não. Gosto dela e de quase tudo que escreve. Acho bem original. Como ela o é. No fundo não quer provar nada a ninguém. O suficiente para eu admirá-la ainda mais. O engraçado é que ela nunca soube disso. Talvez agora saiba.
Jordana partiu num taxi sem um aceno sequer, deixando para trás seu aroma de sonhos e a lembrança de um aniversário.

(para Jalna Gordiano)

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