quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

UMA CRÔNICA SOBRE O AMOR E OUTRAS BUSCAS - PARTE III


“Esta cidade é mesmo cheia de portais. Finge-se de morta para nos engolir.” Observou o filósofo enquanto subíamos devagar as escadas de corrimão seboso daquele outro puteiro que ficava nos altos de um casarão antigo construído nos tempos idos pelos coronéis da borracha; os mesmos caras que saquearam e foderam essa cidade. Ao chegar no topo, atravessamos um cortinado transparente e nos alojamos em uma das mesas daquele cubículo escuro, úmido e fedido. Uma puta gorda e mal humorada terminava seu número e caía fora de um pequeno tablado de madeira posicionado ao centro. O som de um bate estaca era alto e escroto, obrigando-me a ler nos lábios do filósofo que me perguntava: “Acha que aqui terei alguma chance?” “Talvez, lhe respondi. Olhei em volta e o que vi foi um bando de homens punheteiros e desesperadamente derrotados como uma matilha de cães baleados e sem alma. Os puteiros, assim como as mulheres, há muito haviam perdido a sua ternura e o seu encanto. Causavam-me agora embruglios, pigarros e cólicas na alma. Marcos pediu uma cerveja e eu outra vez uma coca. De uma voz que saíra de algum buraco qualquer, foi anunciada a próxima stripper. Esta parecia bem mais inflada de vida. Marcos virou-se devagar para olhar o número. Tentei encarar nos olhos um milico do quartel e de aparência indígena, mais ele virou logo o seu rosto.
“Gostei daquela cicatriz no ventre dela, tá vendo?”
“Bem exótica, Marcos.”
“Quanta acha que ela cobra?”
“Não faço idéia.” Olhei e o milico me olhava agora de soslaio como fazem as mulheres quando se sentem observadas e cobiçadas. Tudo é tão parecido. As pedras são sempre as mesmas. Ele me pediria um cigarro e eu aproveitaria a ocasião para arriscar uma conversa.
“Gala retida é um veneno! Uma boa foda abre a mente.” Filosofou Marcos virando finalmente de um só gole a metade de seu copo de cerveja. A puta deu uma voltinha venenosa em torno de um ferro anão, lançando um olhar sibilante para a única mesa que parecia querer nutrir-se de vida e que buscava o batimento das coisas soterradas.
“Viu só? Ela olhou pra cá. Devo chamá-la?”
“Ela vai vir até nós, Marcos.” Tentei acalmá-lo. O milico olhava outra vez, sendo que dessa vez eu olhei bem dentro dos seus olhos que teimosamente se desviaram novamente. Precisava cair em mim. Estava ali para alugar um corpo e não para me apaixonar. O amor entre as espécies estava sendo extinta do planeta. Isso também se refletia em mim que estava me transformando num usurpador de corpos. Cada século com sua doença. Este é o século da total ausência de amor. Do ceticismo. Das buscas perdidas e desesperançosas por um sentido universal. Mas há qualquer coisa bem lá no fundo, sei lá, que ainda me impele a acreditar nalguma esperança da raça humana.
O número havia acabado e a dançarina foi se sentar á mesa ao lado. Marcos só fez girar um pouquinho o corpo e com sua voz mansa de um paroquial pecador, deu inicio a abordagem. Estava ficando grandinho, o filósofo.
“Ela topou, Márcio. Você dá uma olhadinha na minha bolsa?”
“Claro!” Fiquei surpreso com a ligeireza dele. Devia ter lhe avisado: paga-se o dobro do preço quando elas sacam que você é marinheiro de primeira viagem. Fiquei lá esperando. O milico solicitou-me um cigarro conforme eu havia pedido em minha prece silenciosa e particular. Cedi-lhe demoradamente o cigarro fingindo morosidade que era pra tê-lo um pouco mais junto de mim, sentir o seu cheiro e olhar novamente em seus olhos que de perto me pareceram pequenos e espichadinhos, como os de um índio selvagemente doce. Ele levou o cigarro á boca e eu delicadamente fiz questão de acendê-lo. Através da pequena chama do isqueiro, ele fulminou-me com um olhar que eu entendera muito bem e que me fez recuar de uma possível investida. Este não era definitivamente da reserva dos Aruakas. Sim, os Aruakas. Poucos conhecem essa reserva indígena que fica na fronteira de São Gabriel da Cachoeira. Lá, conforme li e vivenciei, a prática homossexual entre os índios é uma prática comum, diária e saudável. No mês de junho, é realizado um bacanal monumental entre os índios homens para celebrar a fartura da caça e da pesca. Os Aruakas são índios fortes e saudáveis que andam nus pelas aldeias de mãos dadas e fazem amor ao ar livre. Na escola da periferia onde trabalho, conheci um aluno meu descendente dos Aruakas. Seu nome era Ennoah. Um garoto de estatura média e forte. Cabelos negros e olhos espichadinhos como os de um mongol. Tinha uns dezessete para dezoito e ainda não tinha sido contaminado pela civilização. Sentava sempre atrás e sempre sozinho. Parecia me comer com os olhos. Desenvolvemos um código secreto entre nós, e um dia, não resistindo mais as suas investidas marotas que se davam sempre através do olhar, o convidei para tomarmos uma cerveja. Foi lá que tive a certeza que ele descendia dos Aruakas porque me confessou. Naquela noite, nos embebedamos e fomos parar numa cama de um motel ordinário. O garoto possuía uma energia impressionante pro sexo. Fui socado de todas as formas; amado pra caralho mesmo, como nunca o fui. Depois de fazermos amor, ele ficou ali encolhidinho nos meus braços, junto a mim como uma criança desamparada. Dormi com ele nos braços, sentindo os pêlos ralos de bebê de seu rosto suavizados contra o meu. Dormimos assim. E outras noites também. Não somente li como soube também na prática que os Aruakas como os homossexuais ditos civilizados, são inconstantes. Mudam de parceiros a todo instante. Com Ennoah não podia ser diferente. Cansou de mim e começou a flertar com um carinha que não entendeu ou não aceitou a inconstância daquela natureza. Elloah foi encontrado morto com oito facadas num quartinho sujo de uma estância perto da escola. Como era índio e homossexual, nada se fez a respeito. Eu e um pequeno grupo de professores ainda tentamos mobilizar a escola e a comunidade para que a polícia se empenhasse um pouco mais no caso, mas nada foi resolvido e acabamos desistindo, ficando apenas na minha memória a imagem robusta, linda e saudável de Elloah, e os momentos felizes que ele me proporcionou, e eu a ele.

Tentei rabiscar alguma coisa na minha agenda, mas tudo que consegui escrever foi, abre aspas
esta cidade está morta e o teu egoísmo é lindo..
fecha aspas
Fechei minha agenda e olhei para um canto escuro; um bêbado bolinava uma puta horrorosa e de expressão bestial. Ela empurrou ele, levantou-se e caiu fora.Misturei um pouco da minha coca com cerveja e fui tomando. Não demorou muito Marcos retornou. Mais cedo do que imaginava. De sua calvície temperada, emanava um sentimento de tranqüilidade e de aparente transcendência. Como se seu universo interior tivesse alcançado um silencio de êxtase e de ordem.
“Uma boa foda abre a mente,sim.” Foi o que ele me disse logo ao sentar. Parecia mesmo contente.
“Quanto ela cobrou?”
“Sessenta.”
“Sessenta? Porra, sessenta?”
“É que tudo é tabelado: uma chupada no pau por exemplo, é quinze, enfiar no cu é trinta, dez o beijo na boca, ainda tive que pagar o quarto, com desconto da chupada que saiu por dez, a foda me valeu sessenta paus, mas valeu a pena, não fui calçando logo minhas botas, ainda conversamos um pouco, seu nome é Michele, embora saiba que nunca nos dão o nome verdadeiro, tinha uma cara de Leidiane, e aquela cicatriz foi uma cesariana mal feita, mora no Galiléia e tem uma filha de um ano e outra de três...”
“Tudo isso em meia hora?”
“Acho que ela gostou de mim...”
“Não sei se é possível...”
“Você já se apaixonou por uma puta?”
“Que lembre, não...”
“Acha isso possível?”
“Eu não arriscaria...”
“Por que não ariscaria?” Pensei um pouco e disse:
“Por que meu egoísmo me faria sofrer...”
“A única verdade no ser humano é o egoísmo.”
“Bem sacado.”
“Se quiser anotar essa...”
Anotaria sim. Descemos as escadas daquele puteiro e saímos para a tarde lá fora. Um vento geladinho soprou em nossos rostos. Putas e homens negociavam preguiçosamente prazeres e lucros ao longo de toda a viela Mauá. Sugeri que déssemos ainda uma esticadinha no Bar Castelinho para encontrar os amigos. Marcos topou e então subimos a Avenida Eduardo Ribeiro rumo ao tal Bar onde encontraríamos o amigo e também escritor Diego Moraes que estava radiante e feliz com a crônica de seu livro Saltos Ornamentais no Escuro que havia sido publicado na Folha On Line.

Mas isso é uma outra história...


Manaus, quinta feira, 14.01 20010

4 comentários:

  1. eu vez ou outra entrava no "notas de um degenerado" e já começava a reclamar mentalmente "po, não vai mais atualizar esse blog não?. só hoje me toquei desse novo espaço. efim, estou lendo os textos aos poucos, e não canso de me espantar com como você escreve cada vez melhor. não consigo desgrudar das palavras, por mais que a vista fique ardendo nesse fundo preto.

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  2. Obrigado pela visita e pelo comentário. Nem me toquei do fundo preto rssss....
    beijos!!!

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  3. Já te falei que não foi publicado na folha on line. a resenha do escritor tadeu sarmento sempre está no meu blogger desde o dia 16 de dezembro.

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