segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

UMA CRÕNICA SOBRE O AMOR E OUTRAS BUSCAS - PARTE I

Eu estava em casa naquela manhã de terça feira lendo extasiado as correspondências alucinógenas de Burroughs e Ginsberg quando o telefone tocou e eu atendi. Era o filósofo e grande amigo Marcos Ney:
“O que fazes?”
“De bobeira em casa, lendo.”
“Vamos almoçar juntos? Preciso conversar...”
“Sem problemas...”
“Onde?”
“No Big Bang da Matriz.”
“Daqui a uma hora, ok?” E desligou. Fechei o pequeno livro de bolso, tomei um bom banho e fui ao seu encontro. Há muito que não tinha notícias do filósofo, desde que separou-se da esposa recente voltando a morar com os pais no bairro do Santo Antônio. Sua voz me pareceu grave e muito triste. Quando separou-se da primeira esposa Marcela, tomara um litro todo dos produtos Modalva (inspirando mais tarde o Padre Fritz, um personagem do ultimo livro que escrevi. ) Na ocasião, apresentei-lhe a idéia da revista sirrose salvando-lhe de outras tentativas de morte. Com Lucicléia podia ser bem pior, doze anos juntos, uma filha linda, era preocupante. Talvez quisesse me ver para falar sobre essas coisas e eu como sempre estava lá para ouvir e lhe dar uma força.
Era uma manhã de terça feira relativamente calma. Enquanto eu descia a Sete, reparava nas pessoas em volta. Pareciam mais gordas e menos hipócritas. Eram sempre assim depois das festas de fim de ano. Marcos já me aguardava frente ao relógio. Estava mais gordo também. Mas sua hipocrisia nem de longe se comparava à daquela gente. Olhava serenamente para os ponteiros do Big Bang da Matriz. Cumprimentei e ele disse: “Todos imaginam que esse relógio trabalha. Mas ele não trabalha. Os ponteiros estão parados. Estou aqui há dez minutos lhe esperando e não os vi se movimentarem. O tempo aqui parou. Congelou. Como tudo aqui nessa cidade.” Me disse isso com a calma e com aquela meticulosidade de avaliar tudo aquilo que respira em sua volta. Fiquei um tempo olhando para os ponteiros e eu tive a certeza que eles se movimentavam, devagar, mas se movimentavam, mas só eu sabia perfeitamente o que ele queria insinuar.
“Então? Vamos almoçar aonde?” Perguntei. Saindo do transe, respondeu. “Não sei. Você escolhe. Conhece esse centro tão bem quanto eu.”
Levei-o a um restaurante que ficava nos altos de uma loja na Marechal Deodoro.
Sentados de frente um para o outro – com os nossos pratos feitos – ele me perguntou:
“E ai? O que andas escrevendo?”
“Nada. Só repondo algumas leituras. Sem inspiração, sabe. Nessa época de ano me falta inspiração.”
“Sei como é que é. Também sofro desse mal nessa época de ano.”
“Joyce também sofria, e Thomas Man também. Eles não conseguiam escrever no natal.”
“Sério? Como sabe disso?”
“Li suas biografias.”
“Então não somos os únicos...”
“Não, não somos...”
“Mas você tá bem. Está mais magro. Rejuvenesceu. Tem até peitinhos...assumiu mesmo?” Sorri levando o primeiro pedaço de frango á boca. Eu havia escolhido frango e ele carne.
“Sim. Aflorou...”
“Deixa aflorar... é lindo... você está mais lindo e sensível...” Olhei para sua calvície e ela estava mais acentuada e me sorria calma. Foi a vez dele mastigar. Olhei os comensais em volta e eles mastigavam com uma certa tristeza. Só nos dois parecíamos ter apetite. Tínhamos apetite de alimento e de vida.
“Mas... me diz uma coisa...”
“Sim”
“Você, assim, não sente uma certa falta do sexo feminino?”
“Pulei essa etapa fisiológica da vida. As mulheres perderam seu encanto. Tornaram-se assistencialistas demais... Estou bem assim.”
“As mulheres são rolos compressores em cima da gente.”
“Mas você tá bem também. Parou de fumar mel?”
“Tenho feito alguns progressos. Ontem por exemplo bateu a porra da fissura e eu saí pra comprar mel. Andei o Santo Antônio todinho, mas acabei parando numa mercearia e gastei a grana com barras de chocolates. Voltei pra casa, meu pai tava no sofá da sala assistindo televisão, minha mãe na outra ponta, uma cara de tempo que não os via assim, um perto do outro. Ofereci os chocolates e sentei ali com eles e ficamos assistindo os três televisão, em silencio... uma cena estranha, digna de um conto insólito.”
“Está avançando mesmo. Fico feliz.”
“Não sei, a qualquer hora sinto que vou desabar...”
“Desaba não. Ainda temos a nossa literatura...”

Aí fez um pouco de silencio. Dava para ouvir os outros mastigando suas tristezas.

“Depois do almoço, mais tarde, quero que me leve ao Rendez-vous. “
“Ao puteiro, Marcos. Levo sim.”
“Estou sem mulher há meses. Gala retida é um veneno.”
“Boa, posso anotar?”
“Não é original. Li numa legenda de um filme do Bunuel.”
“Os amantes?”
“Acho que foi Belle De jour.”
“Porra! Catherine Deneuve?”
“Linda e melancólica. Quando as mulheres ainda não eram assistencialistas...”
“Pode crer...”
Terminamos o nosso almoço. Andamos a esmo pelo centro, e só depois que eu o levei ao puteiro da Mauá. Eram duas daquela tarde cinzenta.

2 comentários:

  1. gosto de como você retrata o marcos, ele parece uma pessoa muito doce e frágil, mas não de uma doçura feminina ou infantil. difícil descrever essa característica num homem, é uma coisa mais de ver que de falar, mas que você capta muito bem nas entrelinhas.

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  2. é bem isso mesmo, é um lance de olhar mesmo. O Marcos é um cara muito terno, meigo...tentei trazer essa caraceristica dele pro papel.

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