terça-feira, 19 de janeiro de 2010

A ROYAL


Era um sábado. Puta ressaca. Despertei com leves sacudidelas de Selminha tentando me acordar:
“Acorda! Aquele teu amigo tá aí?”
“Que amigo?”
“O poeta.”
“Janer? Porra! Diz que não estou. Que viajei.” Virei de lado.
“Vai lá ver o que ele quer, vai? Tá parecendo um pinto na chuva que dá até pena.” Pediu com ternura, Selminha. Não sei dizer não quando ela me pede as coisas com sua ternura tão peculiar. Não esqueço o dia em que ela me pediu uma coisa e eu disse-lhe um não:
“Vamo ter um filho?”
“Não rola, Selminha. Esse mundo tá uma merda. Cheio de tremores e catástrofes e misérias, e eu ainda ganho mal pra caralho.” E não tocamos mais nesse assunto. Pro bem geral da humanidade. Faria como o carinha lá do Assis que naquele século já tinha razão. Tomei um banho rápido, vesti qualquer coisa, meti dois reais no bolso da calça porque sabia que ele ia me dá a facadinha pra intera da cachaça ou pro mel e fui ao seu encontro. O encontrei na varanda sobre o batente da janela olhando minha tia costurar. Falava a ela qualquer coisa sobre o trabalho ínfimo e prático da agulha sobre a submissão da seda. Chovia. Uma chuvinha bem fina.
“Entra aí Janer! Sai da chuva.” Sorriu ao me ver. Foi mais pro centro da varanda e abriu os braços pra receber a chuva. Estava bêbado, descalço, drogado e sujo. Virou-se e disse: “Vim ver minha flor do Lácio.” E me abraçou. O hálito da pasta de cocaína misturado com a cachaça me esbofeteou desgraçadamente minha cara de puta.
“Quer café?”
“Não! Não quero nada. Só vim te ver, te abraçar, porque eu te amo.”
O barulho insuportável e fodido da máquina de costura da minha tia parecia, TLEC TLEC TLEC, trabalhar incansavelmente dentro da minha cabeça doída. A chuvinha amiudada lembrava alfinetinhos caindo preguiçosamente do céu.
“O sentido da vida é vir te acordar.”
“Como se eu já não soubesse. Entra e senta um pouco.”

“PORQUE FAÇA FRIO OU CALOR, NADA ME FAZ MAL
MEUS PASSOS CRAVADOS NAS NOITES DE MANAUS
LUZ FESTA E TEMPORAL...”
Declamou um de seus poemas. Insisti que ele entrasse um pouco, mas ele insistia em ficar ali na chuva e era tragicamente engraçado vê- lo ali na chuvinha, descalço. Olhei para os seus pés e eles estavam sujos e negros como os de um carvoeiro; os meus como os de um pisador de uvas.
“Tento há anos te trazer para a irrealidade, mas não queres. Tens medo. Mesmo assim, lhe admiro. Louvo tudo o que escreves. És o melhor escritor dessa terra.”
“Então entra. Vais pegar um resfriado.”
Entrou e sentou. E me encarou. Os olhos bem vermelhos. Ia começar a chorar. Conhecia tão bem sua melodramancia como as peças de Ibsen.
“Sou um merda! Um merda!”
“Não começa, Janer.”
“Mas você vai redimir todos nós...”
‘Não vou e não quero redimir ninguém. “
“Ah, vai...”
“Não vou não...”
“Está escrito nas linhas... Sou um bruxo, esqueceu?”
“Os bruxos também erram.”
“Eu nunca erro. Conheci Paulo Lino pintando paredes de bares e motéis. Eu disse pra ele, larga desse pincel e vai pintar de verdade porque você é um grande pintor, e ele largou os pincéis de parede e foi pintar aquarela, anos depois estava expondo no hall do SESC onde conheci você. Você lembra disso? Lembras do flutuante do porto chacoalhando naquela tarde cinza de sábado quando você me mostrou Jesuino Marabá e eu disse que você seria um grande escritor porque aquilo ali que li era uma obra prima?”
Selminha veio com o café e ele fumegava.
“Sempre apostei em vocês porque sou um bruxo.” Disse ele.
“Ainda sou um escritor desconhecido e duro.”
“Tudo ao seu tempo...” Olhou pra Selminha e agradeceu pelo café.
“Brigado, linda!”
Selminha cochichou no meu ouvido:
“Ele não quer sandálias?”
“Ele não precisa de sandálias, meu bem.”
“Que é pra sentir a terra, linda. Pés descalços filtram a energia da terra.” Explicou ele sorvendo o gole de seu café. Selminha voltou pra cozinha e os olhos do poeta se acalmizaram adquirindo uma tonalidade menos trágica.
“Vim ver a máquina.”
“Ah, sim, a máquina. Claro. Vou buscá-la.!” Minutos depois estava de volta. Ela estava dentro de uma maletinha cinza. Sopramos juntos o pó duro que havia sobre a maletinha e a abri.
“Porra! É uma Royal!” Disse ele surpreso.
“É, é uma Royal. Mas o que tem?”
“Você disse que era uma Remington, mas a Royal é bem mais clássica que a Remington.”
“Sério? não sabia disso.”
“Isso é uma relíquia. Sente só o cheiro dela.”
“Não sinto nada.”
Mexeu com os dedos nas teclas. Ela emitiu um barulho seco e engraçado. Parecia ainda viva. Fui buscar um papel. Metemos nela e Janer teclou:

“estou viva e celebro!”
Rimos os dois. A chuvinha feito alfinetinhos lá fora caindo. A máquina de costura ordinária da minha tia ainda fazendo TLEC TLEC TLEC. Tudo tão pulsante dentro da minha cabeça.
“Quer fazer jogo nela?”
“Não sei, Janer, de repente, olhando assim pra ela...”
“Se tiver uma importância grande, deixa ela aí, quieta.”
“Me traz lembranças mofentas; cheiros de um passado paraplégico.”
“Entendo. “
“Preciso agora de um tempo pra pensar...”
“Dou-lhe este tempo.”
Ficamos olhando um tempo pra ela. Ela era anacronicamente fascinante. Fechei a maletinha e a pus de volta sobre o guardarroupa de minha finada mãe.

II

Subimos a ruazinha da minha casa para comprar pães. Eu com minha sombrinha colorida parecendo uma pequena santa, ele ao meu lado como um pobre diabo.
“Vamos tomar uma cachaça! Quando te vejo, as tragédias cessam dentro de mim. Ainda sinto os fogos de natal dentro da minha cabeça. Você viu o que aconteceu lá no Haiti? O chão se abriu debaixo dos pés daquela gente. Ás vezes sinto tanta solidão que tenho a impressão de estar pisando também sobre placas tectônicas. Você não sabe o que é miséria e nem solidão. Ontem mesmo na madrugada, dividi uma quentinha e um copo de cachaça com um mendigo. Amanhecemos olhando as estrelas. Tinha que ir trabalhar. Arranjei um trampo num lanche que fica logo ali na Barroso. O cara legal, sabe, foi com minha cara, mas porra, trabalhar oito horas sem direito a vale refeição e nem passagem não rola. É mais valia, saca. Pedi pra sair, mas ele quis que eu ficasse mais uns dias porque a freguesia aumentou, ele pensa que sou burro, disse que ia assinar minha carteira, trabalhei só mais um dia e pedi mesmo pra sair, não sei se foi sacanagem mais ele disse que quando eu quisesse o emprego de volta era só bater lá. Nesses começos de ano sabe como é, me sinto mais deprimido, duro e com falta de grana. Minha senhoria ameaçou botar os cana atrás de mim se não pagasse o aluguel atrasado. Nessas horas me falta aquela machadinha de Roskolnikov. Aceitei o trampo de volta. Fui bater lá um dia antes pra dizer que aceitava o emprego de volta. Aceitou numa boa. “Cedinho, as sete!” Aceitou porque aquilo ali ia encher de freguês de novo, e porque as pessoas iam se divertir com a minha cara de Raul. Canta Raul! Canta Raul! Mas me perdi pela noite debaixo dos temporais tomando cachaça com mendigos e vagabundos. Esqueci da hora. Ele me viu sujo parado na entrada do lanche e me disse: “Porra, poeta! Uma hora dessas!” “Não vim trabalhar. Só vim lhe pedir mais uma chance.” Me chamou prum canto, me falou umas coisinhas paternas e no final me disse: “Só mais uma chance.” Eu sabia que não era. Que ele precisava de mim. E eu dele. É uma relação foda essa do homem com sua servidão. Aceitei o trampo de volta porque não quero congelar de novo nos bancos de praça outra vez e nem virar pataxó frito, sabe como é...”
Não chovia mais alfinetinhos quando deixamos a padaria. Ele olhou pra mim com os olhos de cachorro e eu entendi o que ele queria exatamente. Dei-lhe uma cédula de um real. Ele ainda olhava com sua cara de cachorro. Dei-lhe mais uma cédula e dessa vez ele sorriu e me disse: “Não quer ir mesmo tomar uma cachacinha comigo, minha flor do Lácio?”
“Outro dia, pode ser?”
Me abraçou e me beijou o rosto. Não disse mais nada, virou de costas pra mim e eu pra ele e seguimos nossos caminhos.

Manaus, terça feira 19 de fevereiro de 20010.

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