sexta-feira, 1 de abril de 2011

KARLA

Contava trinta e sete quando finalmente decidiu-se pela mudança. Não podia mais suportar a mulher clandestina gritando dentro dele. Só não o fez logo por respeito á mãe: "Deixa eu morrer primeiro, Carlos, que é pra não ver tamanha vergonha." Disse ela certa vez, quando Carlos tinha ainda vinte e poucos. Esperou pacientemente a mãe envelhecer e depois morrer para que enfim ele assumisse a sua nova condição.
Cuidou só ele de todos os rituais póstumos: enterrou a mãe, respeitou o tempo de luto, vendeu a casinha no bairro João Paulo - seu único bem - cortou todos os laços parentais, tomou os hormônios necessários e foi pro mundo com uma nova identidade na alma. Embora soubesse que era um caminho sem volta, estava decidido.
Carlos virou Karla e caiu no mundo, como já disse. Naquela noite quando a viram chegar no bar "Natureza", transformada, fizeram uma grande festa para celebrar. Algumas, é claro, torceram o nariz. Tava pouco se lixando. Pagou cervejas pra todas. Karla estava tão feliz que uma luz muito intensa saía de dentro de seus olhos castanhos. Os cabelos encaracoladinhos desciam alegres e envaidecidos por sobre os ombros de ossatura estreita.
Na sua noite de estréia, só uns poucos se engraçaram dela: "No começo é assim mesmo, não te esquece que são as rachas que ainda mandam." Tranquilizou uma delas. Passou então a frequentar com mais afinco a Tamandaré e imediações, fazaendo dali seu ponto de batalha. Havia porém, alguma coisa de muito errado com Karla. Na verdade, sempre houve algo de muito errado com ela, desde os tempos de michê, no corpo de Carlos. É que se apegava muito fácil aos clientes. Uma delas, a de nariz de tucano, advertiu: "Puta não se apaixona, menina." Mas o que ela queria era se apaixonar, e depois, ela não era puta não, estava ali só passando uma chuva.
O tempo foi passando e Karla foi cansando da rotina daquele lugar e daquelas pessoas. Botou na cabeça que tinha que ir pra Belém e de lá, quem sabe, até São Paulo. Longe, as oportunidades eram bem maiores. Ali não dava mais para ela, não. O lugar tornara-se nojento. A cidade também. Certa noite as amigas não suportando mais o seu mau humor e depressão, a deixaram largada e bêbada no Bar Mistura. Eram quatro e pouco da manhã. Não havia feito programa algum e precisava de dinheiro. Olhou em sua volta e filosofou sem querer: "A angústia da mariposa não é diferente da de um louva-deus." Já pensava em fazer uma besteira, quando foi abordada por um marinheiro filipino, desses que vez ou outra aportam no cais de Manaus a serviço do Lloyd Queen. Ele sentou-se ao seu lado e pagou-lhe uma cerveja. Não trocaram falas. As luzes giravam no teto do Mistura. Uma canção das antigas tocava. Depois daquele dia, nunca mais se teve notícias de Karla. Há quem se arrisque a dizer que ela partiu com o marinheiro filipino para um outro continente. Eu prefiro assim, e você?

(para o travesti Mayara, da antiga boate Millennium, brutalmente assassinada no dia 01 de maio de 2006)

a deusa: pablo picasso

Um comentário:

  1. que bela homenagem cara! e que triste ao mesmo tempo...ah a vida é foda!

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