quinta-feira, 1 de setembro de 2011

CALDO QUENTE OU O CAPÍTULO DAS TRANSCRIÇÕES - PARTE XXIV

************************************************************************
ÍNDIO. os mineiros eram guevaristas, cara. quando cheguei em Porto Velho, já tinha lido a metade do O Capital, do Marx, tinha lido muito sobre Cuba, sobre Fidel, Chê, mas ainda não tinha alguém que me levasse para uma ideia mais, mais, preponderantemente prática e aprofundada acerca das revoluções, saca? foi quando os mineiros apareceram na minha vida, lá em Porto Velho. aí eu comecei a enxergar tudo, saca? os mineiros eram jornalistas, intelectuais, e eles foram a minha âncora.
LORD. eles bebiam, fumavam muito?
ÍNDIO. bebiam sim, e fumavam muito também. alguns fumavam cigarros, charutos...Napoleão fumava cachimbo e usava cavanhaque. era o mais elegante deles. alto e elegante. o mais intelectual deles, era. este Napoleão já me manjava, e um dia ele e o Romeu (que era um outro mineiro), me vendo sujo e bêbado pelas ruas de Porto Velho, me chamaram e disseram: “por que tu gostas de viver assim?” “assim, como?” perguntei zangado, “assim, cara, sujo e duro?” e eu respondi, “eu sou índio, cara! eu sou índio, bicho! eu sou um manaó...” “senta e toma uma cerveja com a gente, então.” e assim começou tudo. eram educados, os caras, mas deixa eu te falar deste Napoleão especificamente porque era o mais legal e o mais culto dos três. quando cheguei lá em Porto Velho, Napoleão já tinha voltado de Minas com ideias de fundar um jornal, uma espécie de jornal de oposição na cidade, veja bem, ele e o Romeu. os mineiros, tipo, eram quatro: o Napoleão, o Alencar, o Leopoldo e o Romeu. todos elegantes e cheios de ideais. ficavam tipo, impressionados comigo. Leopoldo falava: “porra, cara, tu tens respostas pra tudo.” e eu falava sobre Porto Velho, sobre as ruas de chão de barro, sobre os prédios precários - caindo aos pedaços - sobre aquela gente sofrida e explorada porque eu estava há mais tempo que os mineiros lá e eu me sentia no direito de poder falar do chão de onde eu pisava, e um belo dia mostrei meus poemas ao Napoleão e ele e o Romeu me chamaram pra trabalhar com eles no jornal que pretendiam fundar ali, um jornal de oposição, saca? na época, deixa eu te dizer, na época, na época em Porto Velho reinava o governo do Bengala, Gerônimo Bengala, este cara foi o seguinte, foi um cara corrupto que desviou verba do governo federal pra comprar apartamentos em Ipanema e na avenida São João, né cara? então nós, nós, já com o jornal funcionando, fizemos um abaixo assinado pedindo a interdição dele, mas não teve muita repercussão porque a questão era forte, peixe grande, né cara, e ficamos nisso... sabe, hoje eu penso, Chê Guevara lutou pela liberdade, pela reforma agrária, sai dessa, Sam! é, eu, Burguês, cresci, saca? e hoje eu não tenho materialmente nada, apenas algumas ideias preâmbulosas...
LORD. mas eu quero saber um pouco dos mineiros, cara.
ÍNDIO. primordialmente, eu e os mineiros discutíamos a vida em todos os seus sentidos. só que, quando você discute a vida, você não discute apenas a questão de respirar, você discute a maneira de comer, de beber, de andar, de conviver, de morar, entendeu? O quê que se resume a isso? resume a você conviver, mas o que é conviver? conviver, deixa eu te dizer, conviver é... o estado psicológico e social de você estar na sociedade.
LORD. viver pacificamente, é isso?
ÍNDIO. não, não é isso, é outro passo. a questão é de você viver e de se relacionar socialmente, se é pacificamente, eu já não sei, entendeu? mas aí é o seguinte, aí vem a ramificação de tudo isso, de você viver uma vida pacificamente ou não. cê pode até matar ou morrer, mas é socialmente que você vive, é socialmente o ato de você contestar...
LORD. fico pensando nos mineiros ouvindo os teus delírios...
ÍNDIO. é Burguês, é verdade, é verdade, e Napoleão se assemelha muito a você, sabe, cara, um sujeito pacífico, intelectual, se assemelha muito a você...
LORD. hummmm
ÍNDIO. posso cuspir?
LORD. pode, pode.
ÍNDIO. porque eu acho que o cuspe pra mim é tudo, cara. quem não cospe, está morto. (Índio dando uma cusparada)
LORD. está morto, está morto. bela filosofia. mas fala um pouco mais dos mineiros, cara.
ÍNDIO. um dia como este já estávamos bebendo. bebíamos todos os dias depois que deixávamos o jornal. havia um bar logo de esquina, perto do Cine Lacerda onde enchíamos a cara e filosofávamos. eu me sentia importante no meio deles porque eles me deixavam pensar, e eu as vezes extrapolava e vomitava os meus delírios. aprendi numa tarde cruzar as pernas como o Napoleão e a gesticular freneticamente como o Alencar e como o Leopoldo, e assim eu fui me sentindo importante ali, no meio deles. no meio de um lugar esquecido e terrivelmente quente. foram os mineiros sem dúvida alguma que trouxeram um pouco de luz pra Porto Velho, e se hoje eu sou o pouco que sou, agradeço aos mineiros.
LORD. os mineiros...
ÍNDIO. era sempre Napoleão que dizia, quando os ânimos se exaltavam: Sam, você tem a palavra...
LORD. e você tinha a palavra sempre?
ÍNDIO. eu tinha a palavra naquele momento da minha vida. eu tinha a palavra. Sam tu acha isso? Sam tu acha aquilo? eu não acho isso, eu não acho aquilo, eu penso dessa maneira, agora cê imagina um índio tendo a palavra, eu tinha a palavra, e não achava, eu pensava sobre isso ou aquilo, saca? isso em oitenta e seis, a mais de dez anos atrás. os mineiros eram lindos, cara, e tinham uma pele macia, olhos claros e a mesma altura. andavam esguios e onipotentes pelas ruas poeirentas e ensolaradas de Porto Velho. pareciam deuses.
LORD. e o que eles faziam nesse cu de mundo, cara? o que eles buscavam, afinal?
ÍNDIO. o mesmo que eu buscava.
LORD. mas o quê?
ÍNDIO. sei lá!!
LORD. só.

Nenhum comentário:

Postar um comentário