terça-feira, 13 de setembro de 2011

CALDO QUENTE OU O CAPÍTULO DAS TRANSCRIÇÕES - PARTE XXVII

UMA NOVA GRAVAÇÃO
(Bairro de Petrópolis – 1998)
(TILINTARES DE COPOS E BARULHO DE MOTO ARRANCANDO NO FUNDO)

ÍNDIO. este bar aqui, Burguês, é da Maria Pinto. te trouxe aqui porque aqui é o único bar deste bairro que ainda bebo.
LORD. gostei daqui, Sam.
ÍNDIO. chego aqui, bebo o que eu quero, ouço o que eu quero, falo com quem eu quero. nos outros bares as pessoas me odeiam. não suportam minha cara, sabe. ainda hoje quando vou a um mercadinho lá embaixo, as pessoas olham pra mim, assim de lado, como se dissesse, maconherozinho, cachaceiro, vagabundo, pilantra; até pederastazinho já ouvi chamarem por trás. mas o que eles não sabem é que eu sou o fundador desse bairro. quando cheguei aqui essa gente nem existia. eu andava livre, subia nas árvores e tomava banho nu nos igarapés que corriam atrás da rua Raquel - hoje tomada pelos traficantes aqui do bairro, saca? o que eles não sabem é que sou poeta e que ajudei a fundar a sede do Partido Comunista aqui no bairro, e que graças ao partido, trouxemos melhorias pra cá, tipo, água, luz, posto de saúde, escola... e quem sou eu agora?
LORD. nossa, cara, que sensação mais escrota de injustiça essa.
ÍNDIO. mas deixamos de lado. ouviremos música sacra e dançaremos na chuva, cara!
LORD. isso seria maravilhoso!
(um pagode assassino tocando no fundo: não quer saber de nada não quer ver ninguém)
ÍNDIO. olha, Burguês, eu não quero ter vínculo algum com essa poesia que tá aí, sabe? eu sou poeta assim, sabe, calado, da noite. ando sozinho, sabe, e eu quero botar minha poesia na rua dessa maneira, saca? sem muito alarde porque sou tímido pra caralho, sou tímido mesmo. eu escrevo a poesia e não quero que ninguém veja ela, ou a veja, arghhh, esse nosso português é horrível...
LORD. não esquenta, não, estamos falando uma linguagem bem coloquial aqui.
ÍNDIO. a coloquilialidade, arghhh... enrolou tudo agora!
LORD. uma linguagem solta e sem frescura, cê sabe disso.
ÍNDIO. não, não, vale tudo, eu sei! mas é o seguinte, cara, minha poesia sai das entranhas do meu barraco, e você conhece muito bem o meu barraco. muitas vezes eu escrevo sozinho lá dentro, sob luz de velas. tenho mais de vinte poesias inéditas que eu queria te mostrar. só quem sabe disso sou eu mesmo.
LORD. não são poesias póstumas, não, né?
ÍNDIO. não sei, seu eu morrer depois, pode se tornar póstuma.
LORD. (rindo) cê acha que aos quarenta anos é a idade ideal de morrer?
ÍNDIO. aos quarenta? se eu morresse hoje tava bom demais. eu ia botar muita fé em você, porque a primeira coisa que cê deve fazer após minha morte é o seguinte: deve ir lá no meu barraco e dizer: “Socorro, cadê os poemas do Sam? onde estão? a Socorro banhada em lágrimas diria a você: “estão ali, numa bolsa de palha dourada pendurada com chocalho!” e você com aquela gana de botar logo as mãos nos poemas, né: “tá bom, chora aí que já estou indo...” mas é claro que tudo isso é brincadeira, vamos parar com isso... não, mas, olha Burguês, tipo assim, ó, se eu morrer primeiro que você, fica acertado assim, cê leva para sua casa os poemas e cuida bem deles pra mim, porque é muito provável que, com essa vida que eu levo, bebendo e fumando desenfreadamente, eu me despeça desse mundo antes que você. afinal, não sabia não, né? mas sou cardíaco, como o meu pai. sou cardíaco. outro dia agonizei na cama, e pra eu poder respirar, a Socorro teve que dar porrada por várias vezes em meu peito pra eu poder voltar a viver. a Socorro é companheira, ela não me deixa morrer e eu não sei o motivo... então se eu morrer primeiro que você, fica assim, ó... eu tenho é... eu nunca disse pra ti, mas eu tenho é... além dos meus poemas, duas peças para teatro, (LORD NÃO SE CONTENDO DE RIR) tenho este romance na cabeça, um livro infantil para crianças - que estou escrevendo com a Adriana - e esta Carta para Manaus que é o meu desabafo... mas por que tu ris? é sério...por falar nisso, posso deixar um recado aqui pra Adriana?
LORD. claro, claro, manda, vai.
ÍNDIO. Adriana é o seguinte, a Adriana é uma mulher ma-ra-vi-lho-sa... Adriana? um beijo pra você meu amor daqui a vinte anos. papai já morreu, viu? (risadas gerais) não, mais é sério...
LORD. qual é a tua impressão da morte?
ÍNDIO. (lembrando um de seus poemas) a morte paira sobre mim, sobre ti, sobre a paz/ paira faminta em Kinshasa/ as guerras nascem da morte/ a morte presa à capsula/ química e fulminante/ os abrigos nas montanhas contém vida e morte: coexistem, coabitam/ mas o que é a morte senão uma palavra insípida que aprendeste a temer? abraças do corpo a vida?/ é a morte que por detrás afagas/ a morte não é abstrata... arghh, apaga, apaga, apaga isso!!
LORD. a morte a morte a morte a morte a morte a morte a morte a morte... mas isso é lindo, cara!
ÍNDIO. cê acha, é? ah, Burguês, eu te amo!!
LORD. tu é muito querido também, meu chapa.
ÍNDIO. mesmo que eu te traia no futuro?
LORD. mesmo que me traias no futuro.
ÍNDIO. como Judas traiu Jesus?
LORD. como judas traiu Jesus, fazendo um bem imenso a humanidade.
ÍNDIO. brindemos, então!!
LORD. brindemos!!
INDIO. A Judas?
LORD. a Judas!
ÍNDIO. vou pedir mais uma cerveja á Maria Pinto, mas estou com pouca grana. cê paga a próxima?
LORD. pago sim.
ÍNDIO. é assim que se fala, cara.
(breve intervalo enquanto FraNZ troca a fita)
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