quinta-feira, 15 de setembro de 2011

CALDO QUENTE OU O CAPÍTULO DAS TRANSCRIÇÕES - PARTE XVIII

(Jessé no fundo: como cachorro na noite, vou seguindo meu caminho)

LORD. como é o negócio?
ÍNDIO. era um domingo triste como esse. o filho duma égua esperou meu cunhado abaixar pra amarrar o tênis e aí, enfiou a faca na bexiga dele. isso tudo lá embaixo, na Raquel. eu vi da minha janela o caminho que meu cunhado fez com a faca enterrada na bexiga. achei que estivesse bêbado, por isso não liguei muito. tava muito chateado porque ele foi beber sozinho daquela vez. o infeliz chegou vivo até em casa cambaleando, mas na manhã seguinte, morreu no hospital com hemorragia interna. quando me deixares em casa, vou te mostrar direitinho o caminho que ele fez. ainda há marcas de sangue no asfalto. e olha que já faz uma cara de tempo.
LORD. tipo o quê?
ÍNDIO. uns... três anos atrás.
LORD. tudo isso? mas e a chuva? e o tempo?
ÍNDIO. a chuva não lava o que o tempo não apaga.
LORD. só.
ÍNDIO. meu cunhado era um cara legal. tirou minha irmã da zona e fez um puxadinho aqui mesmo pra ela. bebíamos juntos aos domingos e torcíamos para o mesmo time. mas ai que naquele domingo ele queria beber sozinho na Raquel e aconteceu o que aconteceu. uma discussão besta, um mal entendido, sei lá, ninguém sabe. sou índio, cara, e eu mato. quando soube, me armei de facão e desci até a Raquel, mas nem sinal do filha da puta. té hoje. polícia não resolve nada. quem resolve é o homem. de modo que se eu encontrar esse filho duma puta vivo até hoje, eu mato na degola. agora vou te dizer uma coisa, eu tenho um irmão caçula muito querido que sei que ele não presta no sentido de não fazer nada na vida, só querer beber, fumar maconha e olhar pra lua, mas se alguém encostar no meu irmão, eu mato, sacou? tenho sangue manaó que corre aqui nas minhas veias. e este meu irmão é a única pérola que eu tenho em casa. e se alguém tocar nele, eu mato o cabra. faria sabe como? bom, eu pegaria o cara... quer dizer, posso descrever como eu faria? tem algum problema?
LORD. não, manda, vai.
ÍNDIO. grava aí então: eu pegaria o cara, vou te falar francamente, eu pegaria o cara, chamava uma moçada aqui do bairro, o Lalau, o Pirapitinga, o Ratão e o Zenon, a gente levava o cara pro meu quintal, amarrava ele numa árvore, pegava um chicote que eu tenho lá em casa - um chicote de corda de náilon - surrava-lhe bem as costas dele, aí depois, com o terçado, torava-lhe a mão direita, depois a esquerda, aí então um pé, depois o outro, entendeu? aí o seguinte, cara, arrancava-lhe o pênis e os sacos, depois embolava tudo e enfiava-lhe na boca para que ele parasse de gritar porque eu sei que a dor é grande, mas purifica, e aí então, com um único golpe, partiria seu crânio ao meio, dando por encerrado a sessão.
LORD. e o corpo? o que tu ia fazer com o corpo?
ÍNDIO. enterraria ali no quintal mesmo, ou então daria os restos pro Ernesto que anda velho e sem fome.
LORD. putz, cara, que frieza? farias tudo isso mesmo?
ÍNDIO. faria, cara, porque eu faço!
LORD. de repente, teus poemas são tão humanos, e agora tu me dizes isso.
ÍNDIO. é cara, mas ele matou meu irmão, então ele não é humano.
LORD. tipo, código de Amuhrab?
ÍNDIO. é isso mesmo, cara, olho por olho, dente por dente.
LORD. mas tu fazendo isso, tu não serias mais desumano que o cara que matou teu irmão?
ÍNDIO. (rindo bem alto) imagina, cara, se eu faria isso. tô brincando, tô brincando...
LORD. affiii... eu, eu, quase que acreditei, cara. me arrepiei todinho.
ÍNDIO. imagina, Burguês, tava só tirando uma onda contigo porque tua alma é uma flor. é claro que se um cara matasse meu irmão, eu chegaria com a justiça e diria: toma justiça, agora resolve este caso. mesmo sabendo que a justiça não funciona nesse país. imagina, cara. não mato um carapanã. passo mal com sangue, cara.
LORD. (sorrindo mais calmo) por que matar, né cara? olha ontem mesmo eu cheguei em casa aí tinha um sapo no banheiro, um sapo...
ÍNDIO. ah, cara, não mato, não mato...
LORD. minha mãe gritou, cara, ela queria que eu matasse o sapo, mas não mato sapos, aranhas de parede, não mato. tenho pavor de aranhas de parede, mas não mato... minha mãe tem horror de gias, quando ela vê uma gia ela entra em histeria e põe a casa de pernas pro ar, aí eu digo, calma mãe, é só uma gia. mas como explicar que o medo é algo que construímos dentro da nossa cabeça?
ÍNDIO. porra, o Monjica trabalhava isso maravilhosamente bem, e ninguém sacou nada. o cara virou um pastelão.
LORD. lembra da Sala Especial ás sextas feiras? assistia os filmes do Monjica na sala especial.
ÍNDIO. se lembro, cara, eu me acabava em punhetas. já batia punheta nessa época. vai, vai, vai!! ahhhhhh... como era doce o meu francês...
LORD. eu sentia uma certa excitação, não vou mentir... mas eu batia punheta mesmo era nos filmes do Jece Valadão... sei lá, aquele cara tinha uma pegada boa.
ÍNDIO. Burguês, olha, sempre digo pra minha filha e pra minha esposa: o FraNZ é um cara bonito, um cara... que tem muitos conhecimentos...não é rico, mas deve ter um dinheirinho sobrando em algum banco, mas trabalha e ganha razoavelmente bem – tem uma mãe maravilhosa, com todo respeito, mas eu francamente não sei o que ele tanto busca... o que tanto cê busca, Burguês? fala pra mim o que tu quer saber mais? posso te ajudar, cara, o que tanto cê busca?
LORD. símbolos comuns da vida. cê é uma referencia pra mim. te conheço uma cara, e o que eu busco não está nos condomínios... quando eu sempre digo que conheço um poeta maravilhoso eles me perguntam, aonde ele mora? aí eu digo, em Petrópolis, aí eles dizem, em Petrópolis? sim, em Petrópolis, cara, ele mora em Petrópolis mermão, lá em seu barraco lá, cara, vai questionar? o cara tem um pensamento, as palavras pulsam no papel, estão lá pulsando nesse momento agora, cara.
ÍNDIO. cara, me lembraste o Zeca falando.
LORD. ás vezes incorporo o Zeca. mas deixa eu te dizer: no seminário de ontem na faculdade, eu estava bêbado, eu apresentei um seminário bêbado, li-te-ral-men-te bê-ba-do, e no final da minha apresentação, eu rasguei o poema do Bilac que eu deveria ler, e no lugar, declamei o seu.
ÍNDIO. como foi isso?
LORD. foi o seguinte: quando saí da tua casa eu parei no boteco e bebi pra caralho, depois do trabalho enchi a cara novamente, cheguei na faculdade literalmente bêbado e quando cheguei lá pra apresentação, eu vi a sala toda enfeitada com cartazinhos, painés, retroprojetores, tudo muito organizadinho, e eu tinha no bolso apenas um roteiro amassado do que eu supostamente iria falar sobre os parnasianos, e quando chegou minha vez, eu disse que achava um porre falar dos parnasianos e que não deveria ler aquele poema de 04 versos todo arrumadinho do Bilac, que ele fosse á puta que pariu que eu não ia ler merda nenhuma dos parnasianos e muito menos dos modernistas, acho que meti os modernistas no meio também, sei lá, e aí então eu acabei rasgando o poema do Bilac ali mesmo e peguei o do Sam e comecei a ler e todos ficaram me olhando odiosamente, e como era longo aquele seu poema a professora não deixou que eu o concluísse, dizendo: o senhor fugiu da pauta, seja mais breve e nos fale com clareza sobre o que lhe foi proposto, e contenha-se, Sr. Franz, o senhor está nervoso demais... eles nunca entenderiam toda a minha fúria, Sam, eu queria na verdade que todos soubessem que o marido daquela filha da puta - que no bimestre passado havia me reprovado - escrevia poemas parnasianos imundos e hoje é membro da academia, e é por isso que eu odeio cada vez mais os parnasianos.
ÍNDIO. eu agradeço pela lembrança, Burguês, mas seja franco, cê me acha um poeta de verdade?
LORD. tu és um poeta, cara. a não ser que tenhas me enganado todo esse tempo.
(RISADAS DO ÍNDIO)
ÍNDIO. mesmo assim, liso, sem dinheiro? te explorando todas as vezes que põe os pés neste bairro?
LORD. tu és um poeta feio e liso, cara! e eu te amo por isso.
(nesse instante os dois riem, e logo depois param e prestam atenção numa canção idiota que toca, mas não dizem nada. mais tarde, quando o fluxo de bebuns diminuem no bar da Maria Pinto, o Indio dá um jeito de ouvirem Billie Holliday que FraNZ trazia escondido consigo em sua bolsa de carteiro, e seguem conversando melancolicamente ao sabor da música...)
LORD. cara, agora é outra onda. ouve só esse sopro de sax.
ÍNDIO. Ella Fitzgerald, é?
LORD. não, cara, é Billie Holliday. manja só esse trompete no fundo. quanta tristeza, meu Deus!!
ÍNDIO. é como, é como...
LORD. é como olhar a chuva de tarde e chorar de saudade olhando os móveis da minha casa, os retratos antigos na parede, as cortinas da sala, a sombra das garrafas de bebidas e os lenços coloridos da cabeça compondo a silhueta da minha mãe sentada nos fundos da sala, pernas cruzadas, fumando sozinha seu Continental e ouvindo Benito de Paula ou os Brutos também amam.
ÍNDIO. sua mãe fumava, cara?
LORD. fumava e bebia tranquilamente todo fim de tarde. era como um ritual: ela colocava um disco na vitrola, servia-se de um bom whisky, acendia seu cigarro e ali ficava em silencio, pensativa. a casa enchia-se de seu perfume materno e de uma tristeza bonita e intransponível. eu me aproximava da sala sorrateiramente e me punha ali só para vê-la congelada no tempo. era como se eu nunca mais fosse tocá-la, ou voltar para dentro de seu útero. isto em 79.
ÍNDIO. isto tudo que me disseste me tocou muito. ficou um doce-amargo na boca. não consigo ter uma lembrança boa assim. é tudo tão enevoado. mas agora senti a pureza do sopro. é como ir folheando devagar as páginas do “Subsolo” do Dostoievsky.
LORD. né?
ÍNDIO. quanto àquela tua pergunta inicial antes de ouvirmos Billie, lembras? se estou bem lembrado dos pormenores, né cara, os detalhes bem não... realmente, a última vez que te contei isso já faz quase um ano, e este ocorrido já avança para os dez anos. agora tu achas mesmo necessário contar?
LORD. cê quem sabe.

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