quinta-feira, 8 de setembro de 2011

CALDO QUENTE OU O CAPÍTULO DAS TRANSCRIÇÕES - PARTE XXVI

(CONTINUAÇÃO DA MESMA NOITE)

ÍNDIO. Madre de Dios, cara, eu nunca esqueço. ali corria um rio vermelho enlameado e eu fui ver, eu fui ver um cara morto com a cabeça enfiada na lama...
LORD. (impaciente) mas depois que foste expulso do ônibus, ficaste exatamente onde?
ÍNDIO. depois disso, saca, andei como uma bosta cambaleante pela estrada escura até chegar num vilarejo chamado Pomeral. lá conheci um Boliviano e um Mato Grossense, mas antes, né, o ônibus, bem...
LORD. (chupando seu queixo com a mão direita)
ÍNDIO. não tinha dinheiro, mas eu tinha uma calça roubada, uma calça quebra-mar, lembra as calças quebra-mar? naquela época a quebra-mar era bem cobiçada, só que a minha, que eu tinha roubada de um varal, era velha e tinha um rasgo no fundo, bem bem, era, bem bem, assim, rasgadona no fundo, mas tava nova porque eu tinha usado poucas vezes aquela calça, aí eu entrei no ônibus. aí então, o resto né, no meio da viagem eles chegaram pedindo o bilhete aí eu disse: “é o seguinte, vou pra Porto Velho, aí eu quero, eu quero, eu quero, somente ir, mas não tenho dinheiro, apenas uma calça de marca rasgada e uma vontade imensa de ir”. aí mostrei a marca da calça, eu lembro que ele anotou, ele anotou lá no, lá no bilhetinho assim, “tudo certo...”
LORD. e aí?
ÍNDIO. aí que me botaram pra fora.
LORD. Putz!!
ÍNDIO. (acompanhando a musiquinha: abençoar...)
LORD. muita coragem, né cara?
ÍNDIO. aí, né cara... (tosses) cigarro, Burguês, porra!!
LORD. ah, sim, cigarro...
ÍNDIO. cê tá muito bonito, cara, tu. veio de onde, cara, tu?
LORD. (falando como uma menina. ) de casa.
ÍNDIO. eu te curto pra caramba, sabia? se eu te trair no futuro, cê me perdoa?
LORD. bom...
ÍNDIO. bom?
LORD. eu não sei, caralho. talvez eu te perdoe, depende.
ÍNDIO. depende do quê?
LORD. do tipo de traição.
ÍNDIO. trair é trair.
LORD. se trair é somente trair, talvez eu não te perdoe.

há então esse vácuo sonoro

(& fim da gravação)
***

DELÍRIO DE FRANZ NA VOLTA PARA CASA

três da manhã. um homem correndo na chuva. uma sombra H2o. rá!! os holofotes dos taxis. este homem sou eu na madrugada e estou longe aproximadamente de casa. um taxi para. quando se entra curvo em um taxi num dia de chuva é como se faltasse uma metade de você. então você diz, boa noite motorista! me leva para um outro lugar. para o centro de qualquer lugar. seja gentil! estamos flutuando na mesma merda. bostas flutuadoras é o que somos. estamos sozinhos e doentes. você em seu carro, eu em meu cofre de delírios. me leve para onde não exista casa, família, lar, nada! ou simplesmente ficaremos aqui, só nós dois dentro desse seu carro rodando pela cidade vazia, que tal? ouviremos Rachmaninov - que eu adoro, já ouviu Rachmaninov? não se preocupe, eu pago a sua gasolina. eu não tenho pressa de nada. o senhor tem alguma pressa? quero ver os neons gotejantes da cidade. as árvores que dançam com os monges. homens fornicando sob as marquises. ligue o motor! gire as rodas! não ligue para minha insanidade. tudo na perfeita desordem. só siga e não pare enquanto eu mandar! atravessaremos Manaus, a névoa, o frio e a solidão. Oh noite triste! sou um desgraçado feliz. mas não importa quem eu seja agora. se trago comigo essa faca cravada em meu coração. sinto que devo apenas seguir. e me calar.
neste instante ouço de verdade o barulho da chuva arranhando com suas unhas negras o vidro do carro. seu apelo é sagrado. calma e selvagem. seu cheiro implacável de chuva. nesse momento meus dedos congelados de frio abrem as janelas para sentir o cheiro da chuva. seu sexo molhado de mulher-chuva. A CHUVA É MULHER. a chuva não tem passado, presente ou futuro. meus dedos, minhas armas, o que restará disso tudo é uma capsula, porque o amor... bom, o amor, a chuva tem uma vagina dourada. VA-GI-NA. sua visão é esplendorosa. com os dedos, ela abre sua fenda dourada e eu olho TODO O SEU INTERIOR. o interior de uma vagina de chuva. o senhor não vai acreditar no que estou vendo agora. a chuva se mostra por dentro. pare o carro, senhor! vou trepar com a chuva. pare o carro, já! estou mandando! vou lamber cada partícula cintilante que dela emana e mostrar para o mundo que estou vivo. vou penetrar a chuva!!

afinal, de um jeito ou outro, todo mundo busca o amor, não é isso?

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