terça-feira, 6 de setembro de 2011

CALDO QUENTE OU O CAPÍTULO DAS TRANSCRIÇÕES - PARTE XXV

ÍNDIO. os mineiros eram lindos, cara. Romeu nem parecia um mineiro, o cara tinha os cabelos dourados e olhos claros, mas sua elegância era incomparável à elegância soberba de Napoleão. único que destoava deles ali era eu que ficava mais e mais com a pele gasta e maltratada do sol e das bebedeiras violentas. já a pele deles, permaneciam intactas.
LORD. Napoleão certamente usava óculos.
ÍNDIO. todos usavam óculos por causa de suas hipermetropias, e quando todos eles me olhavam de uma só vez nos finais de tarde no Bar Lacerda, eu via as raízes vivas do sol refletidas nas lentes de seus óculos e aquilo pra mim era extraordinariamente belo. nunca os vi sem os óculos.
LORD. mas me conta mais um pouco sobre eles, cara.
ÍNDIO. os mineiros sobretudo eram humanistas, até na hora de comer. olha só, cara, pra começar, o almoço deles era arroz, beterraba, cenoura e carne cozida. a janta deles era, sopa de arroz, cenoura, beterraba, eeee, berinjela... nos domingos era, era, purê de batata, arroz branco com cenoura picada e carne cozida. tudo coloridinho, saca?
LORD. chegou a morar com eles? cê morava num quarto alugado ali próximo deles?
ÍNDIO. (começando a ficar bêbado e chato) quarto alugado, han? ééééé, meu anjo, quarto alugado sim, agora deixa eu te dar um abraço, deixa...
LORD. só me conta, vai.
ÍNDIO. mas deixa eu te dá um abraço, cara...
(Indio abraçando calorosamente o Lord).
LORD. agora me conta, vai.
ÍNDIO. sim, sim, eu era vizinho dos mineiros numa pensão, sim, só depois é que fui morar nos fundos da casa onde funcionava o jornal, então eu não precisava mais pagar aluguel nenhum, os mineiros me pagavam um salário porque me tornei uma espécie de office boy deles e colaborador do jornal, além de me pagarem um extrazinho também porque eu ajudava na limpeza do prédio, e aquela foi a melhor fase da minha vida porque eu vi aquele jornal decolar e depois despencar assim, ó, num estalo, ó, assim sabe... então é o seguinte, como eu era o office-boy deles, o Leopoldo dizia: Sam, falta pagar aqui uma promissória, vá lá e pague esta promissória; ou então, Sam, falta comprar cigarros e os tabacos do Napoleão, vá lá e compre! ou então, Sam, falta descontar este cheque pro Romeu, vá lá e desconte este cheque pro Romeu. e eu COM OS PÉS alegres e descalços ganhava as ruas barrentas e ensolaradas do centrão de Porto Velho sorrindo pro sol e as pessoas ali me olhavam atravessadas porque ninguém gostava da intromissão dos mineiros no cotidiano da cidade, mas que na verdade, era o jornal que incomodava; eram as ideias dos mineiros que incomodava aquela gente subserviente ao Gerônimo Bengala que fazia uma politica de pão e circo igual, era... mais, saca, a parte melhor era quando eu entregava os jornais nas bancas ou quando eu atirava os jornais nos pátios das casas, era como atirar uma bomba na paz daquela gente toda... e era sempre uma notícia bombástica para derrubar o tal de Bengala. então em Porto Velho eu curti muito, cara.
LORD. os mineiros te ajudaram, cara...
ÍNDIO. sim, me ajudaram muito. mas eu queria te falar agora de Cuiabá, de Brasília...
LORD. mas antes, faz um retrospecto de Porto Velho, vai?
ÍNDIO. faço sim, mas por que tu sumiu, cara, hein? mas por que tu sumiu? deixa eu te dar um abraço...
LORD. compromissos, cara, compromissos...
ÍNDIO. (abraçando outra vez calorosamente o Lord.)
ÍNDIO. sabia que ando com saudades de ti, cara?
LORD. hannn... eu também... fala então de Cuiabá...
ÍNDIO. Cu-cu-Cuiabá? Bom, Burguês, Cuiabááá...eu morei em Cuiabá três meses... é, é, uma cidade escrota. muito barro e quente demais...mas o meu objetivo mesmo era São Paulo. só que, quando cheguei em Brasília eu me senti desamparado e só. senti medo de seguir viagem, e depois de dois dias de intensa bebedeira pelos bares adjacentes da rodoviária, havia gasto tudo e então resolvi voltar. mas como é que volta? me lembro que fui colocado pra fora do ônibus. mas, não sei se devo falar sobre isso hoje.
LORD. não, mais... cê acha que deve falar...?
ÍNDIO. bom...
LORD. que rolou?
ÍNDIO. no ônibus é o seguinte, né cara, cê entra, se aconchega, e só depois no estradão é que eles pedem o bilhete, e quando isso aconteceu eu estava entre Mato Grosso e Rondônia sentado nos fundos abraçado a uma garrafa de cachaça - posso dizer a marca?
LORD. foda-se!!
ÍNDIO. era uma garrafa de cachaça sessenta e um e eu estava abraçado desesperadamente a ela no meio de uma estrada escura. depois tu conserta, tá?
LORD. mas não tem conserto.
ÍNDIO. chorei, cara...olhei pros rostos frios dos passageiros pedindo alguma espécie de ajuda mas ninguém me disse nada porque uma hora dessas tu é mais um fodido. e então eu fui atirado entre a escuridão e a morte...
LORD. ah, fala sério...
ÍNDIO. cheguei a ver ainda uma caras frias rindo da janela, zombando da minha desgraça. mas pula isso aí, cara, eu tô ficando bêbado.
(aí ocorre uma interrupção da fita devido a embriaguez de ambos. depois de meia hora, a gravação recomeça. fraNZ tenta a todo custo entender como Sam retorna á Porto Velho. mas não que Sam insista em pular esta parte – na verdade até hoje, Sam nunca revelou a FraNZ como sobrevivera aquele episódio em que é jogado no abismo negro. o que fraNZ ouviu ele dizer é que, na vida da gente sempre existe uma lacuna, mas fraNZ não consegue engolir aquela estória, não.

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