terça-feira, 20 de setembro de 2011

CALDO QUENTE OU O CAPÍTULO DAS TRANSCRIÇÕES - PARTE XXIX

ÍNDIO. olha, Burguês, isso aconteceu no início dessa década, logo que voltei de Porto Velho. fiquei muito tempo fora de Manaus e quando voltei eu precisava me relacionar novamente com a moçada, então lembro que a gente se reunia no LÓTUS BAR, que ficava na rua de cima, e o proprietário, o Marcelo, era um cara legal. nós levávamos as nossas fitas e ouvíamos o que queríamos, então havia toda aquela agitação daquele final dos anos oitenta...
LORD. quantos eram ao todo? ÍNDIO. uns dez aos quinze, era. tinha dias que chegava a quinze pessoas.
LORD. tinha garotas no meio também?
ÍNDIO. tinha. lembro que havia três irmãs com nomes esquisitos.
LORD. tipo?
ÍNDIO. terminavam com LÂNDIA, tipo, Andrelândia, Silverlândia, e a outra cara, deixa eu lembrar, eu não, não, não estou lembrando agora, mas terminava com lândia também...mas esta tinha um apelido estranho e eu lembro.
LORD. e como era?
ÍNDIO. era, Careca.
LORD. Careca?
ÍNDIO. isso, era Careca, porque ela tinha um cabelo muito baixinho, muito regadinho, saca, e ela pintava de azul, parecendo um personagem da turma da Luluzinha...
LORD. bom, tinha garotas também...
ÍNDIO. tinha, e rolava muita cerveja porque a maioria trampava.
LORD. tu trampava em quê?
ÍNDIO. trampava de chapeiro num lanche que ficava no bairro da Cachoeirinha.
LORD. sei, continua.
ÍNDIO. quando tínhamos dinheiro tomávamos cervejas, né? mas quando estávamos durangos, aí inteirávamos pra cachaça ou montila. fazíamos caipirinhas, batidas e deixava rolar, mas quando estávamos por cima de grana mesmo aí rolava basicamente Cerveja, Campari, Conhaque, e até um whiskizinho, barato mesmo, tipo Natu Nobílis, por exemplo, e é claro, o fumo não podia faltar. aí que sexta feira, um carinha da turma deu a ideia de irmos á praia da Ponta Negra: “pô, porque não vamos dar uma esticada na Ponta Negra a turma toda, hein?” aí a gente, a gente...meio que receiosos de ir pra lá porque naquela época a Ponta Negra era uma porcaria, né? mas aí aquele papo de curtir uma noite diferente, acabamos decidindo ir todo mundo...e aí foi que aquelas nossas idas à praia da ponta Negra nos fins de semana, tornaram-se frequente entre nós, e isto foi durante quatro meses - enchíamos a nossa cara no Lótus Bar, e já muito doidões, pegávamos um ônibus até a estação da Matriz, e de lá o último, rumo à Praia da Ponta Negra.
LORD. as garotas também iam?
ÍNDIO. todos iam, cara, numa algazarra só. chegando lá, era pura curtição. cada um correndo atrás do outro - as três lândias nuas na praia, todos nus, bebendo e fumando cada um seu bagulho sossegado, olhando as estrelas, um frio do caralho, mas ninguém sentia falta do cobertor não, saca? nunca rolou bronca nenhuma, não, mas até aquele dia, né?
LORD. quê que rolou?
ÍNDIO. a morte do Sapo, cara!
LORD. Sapo? quem era o Sapo?
ÍNDIO. o Sapo era um figura da turma. foi quem deu a ideia do passeio á Ponta Negra. já chego lá.
LORD. soh.
ÍNDIO. o Sapo era um figura querido da turma, só que ele ficava ás vezes inconveniente quando bebia muito. nesse dia ele achou de misturar tudo, saca?
LORD. como era o nome dele mesmo?
ÍNDIO. cara, o nome dele sinceramente não sei, todos o conheciam como Sapo ¬- Sapo, Sapo, Sapo, Sapo... um tipo assim, entrocadinho, moreno, bem escuro, assim, uma aparência de um sapo mesmo, mas era gente fina.
LORD. sei.
ÍNDIO. neste dia foi muita gente, muita gente, porque também tinha o pessoal do Boquinha e do Bode. o Boquinha era um camelô e ele morava em São Lázaro, só que ele vinha do bairro dele curtir pra cá, bebia com a gente e tal. já o Bode era prata da casa, se criou aqui mesmo. nesse dia rolou muita bebida, a gente ia curtir muito, sempre curtíamos muito... então nesse dia foi uma festa, todo mundo se confraternizando e eu me lembro que não era feriado nenhum, e muito menos aniversário de alguém, era só um fim de semana qualquer, um sábado cara, e quando amanhecesse o dia, voltaríamos todos aos trapos, feito zumbis, de volta para as nossas casas, mas sem arrependimento ou culpas, então eu ficava ali as vezes sentado em algumas daquelas pedras olhando o rio e a noite, rabiscando poemas na minha cabeça e todos aqueles meus companheiros ali bebendo, se divertindo e eu fazendo parte daquela alegria também e eu nunca tinha visto tanto brilho nos olhos do Sapo naquela noite. ele até cantou, coisa que nunca fazia; lembro que naquela noite ele chegou comigo nas pedras e disse: “e aí, Sam, tá curtindo essa noite, cara?” aí eu disse: “pô, que massa”. ele acendeu um preto e passou pra mim. ficamos os dois ali fumando nas pedras olhando a paisagem; um vento do caralho soprava. clima agradável, saca? maneiro mesmo. depois não falamos mais nada, ele deu um pega considerado no preto, tomou um gole da minha cachaça, pulou da pedra, e já totalmente nu, correu na direção do rio. vi ele mergulhar e olhei a lua. ela era toda feita de prata; tudo era lindo. as três lândias também eram lindas caminhando nuas e descalças na areia. uma comuna, cara. me senti numa comuna de verdade. mas aí que, já por volta das sete da manhã, quando nos reunimos pra ir embora, foi que sentimos a falta do Sapo. começamos a chamar por ele e nada. não era justo alguém ficar pra trás. as lândias sentiam frio. todos tremendo ali na areia, olhando desnorteados para todos os lados. nenhum sinal do Sapo. chegamos a pensar que ele tivesse ido embora sem a gente. mas seria muita falta de consideração do cara. o trato sempre foi de irmos todos juntos. havia alguma coisa de muito errado naquilo tudo. nos dividimos em dois grupos e começamos a procurar por ele. o sol vindo com tudo. “ninguém vai embora sem o Sapo.”, disse o Marcelo. andamos de um extremo ao outro da praia. procuramos nos bares de cima, mas nenhum sinal do Sapo. comecei a sentir frio e fome. as lândias encolhidas, começaram a chorar. eu olhava para os rostos secos e baqueados dos colegas, enquanto o Sapo, nada. um deles cogitou: “ele foi embora, moçada.” eu disse: “não, não foi, não. ele pode ter se afogado.” olhamos todos pro rio atrás de uma resposta. o Marcelo sugeriu que mergulhássemos, então ele, o Boquinha, o Bode, eu e os outros, mergulhamos e ficamos mergulhando naquele rio gelado acho que, até umas nove da manhã, e nada dele. fui o último a desistir e caminhei trincando os dentes na direção dos colegas que estavam aglomerados como zumbis próximos das pedras, e aí é que tá, né, cara, aí é que tá, se você deixa alguém estragar a tua noite, acaba tua noite, acaba tudo, né cara? acabou o clima, e o Sapo conseguiu acabar com a nossa noite porque no fundo todos ali sentíamos que havia acontecido alguma coisa de muito ruim com o Sapo. o cara podia até ter morrido ali, mas não ali naquela hora, naquele momento, entendeu?
LORD. e o cara morreu mesmo?
ÍNDIO. desapareceu, cara. e isso é sério.
LORD. como desapareceu? ele se afogou, então? não encontraram o corpo dele?
ÍNDIO. o Marcelo perguntou quem de nós havia visto o Sapo pela última vez? fiquei pensando que eu havia falado com ele uma última vez nas pedras antes dele mergulhar no rio, e depois não lembro de mais nada porque o álcool me nocauteou. mas aí que o Bode, que até então tava muito mais quieto e estranho que os outros, nos falou que o Sapo havia dito pra ele que atravessaria para a outra margem; aí que rolou uma aposta entre eles, e foi então que o Sapo, já muito doido, aceitara a aposta e então ele pulou no rio, e depois o Bode não lembrava mais de nada porque também caiu nocauteado na areia. foi aí então que não tínhamos mais dúvidas que ele havia se afogado mesmo porque ninguém conseguiria atravessar aquele rio turvo em pleno estado de embriaguez. puta que o pariu! gritou a Careca. os banhistas do domingo começaram a chegar porque já eram quase onze da manhã e o sol tirânico queimava as nossas peles secas. os banhistas olhavam curiosos pra gente. uma das lândias perguntou se íamos deixar pra lá ou se íamos chamar a policia ou o corpo de bombeiros. o Boquinha ainda cogitava que o Sapo tivesse ido embora, que devêssemos ligar para casa dele para checar. mais ninguém sabia nada da vida do Sapo, de que pântano ele veio, nem onde ele morava, nada. e se chamássemos a polícia, podia foder todo mundo.
LORD. bom, o cara não voltou mais? encantou-se, é?
ÍNDIO. bom, aí eu vi o desespero real nos olhos dos meus colegas. eu não entrei muito em desespero porque eu sempre fui um cara preparado para a morte, né cara, quer seja a morte de um familiar meu ou de uma outra pessoa... pô, não, cara, fiquei ali sentado com a moçada pensando numa saída pra aquela merda toda... chama a polícia! chama a polícia! alguns queriam, outros não, isso vai dar em merda, cara, vai dizer que matamos o cara; foi então que todos resolvemos voltar para casa e acreditar que ele não tivesse morrido, que de uma hora para a outra, naquele dia mesmo, ele resolvesse dar as caras pelo LÓTUS, e esperamos por ele o dia todo, e na manhã seguinte também, e no outro dia também, a semana toda, o mês todo, até se completar um ano, e nada do cara aparecer. o fato é que ele nunca mais voltou. depois de um bom tempo, de um bom tempo mesmo, quando voltamos a nos encontrar no LÓTUS, fizemos um pacto de nunca mais tocar no assunto, e aí então naquela noite a turma se desfez para sempre como que num encanto...
LORD. isso é maluco cara, porque ninguém desaparece dessa maneira. ninguém encontrou mais o corpo?
ÍNDIO. não, nunca mais!
LORD. e a polícia?
ÍNDIO. nem sombra de nada.
LORD. como é que cê vive com isso até hoje, cara? não rola culpa, não?
ÍNDIO. sei te explicar bem não, mas rola, rola, um outro tipo de sentimento que não é bem, assim, culpa, não, saca? é um... sentimento de peso na alma ou o que quer que seja que exista em nosso interior, mas que não é bem, culpa, não.
LORD. sei, tipo, algo bem parecido com a ideia daquele teu livro de poemas sobre a morte de quase cem páginas que pelejavas escrevendo antes de viajar para Porto Velho, lembras? sobre quando você... mas você não estava preparado ainda pra desenvolver bem esses mistérios profundos da alma, só que – na minha opinião sincera, é que, tudo agora é muito mais interessante porque agora, podes fazer um resumo fodido de bom de tudo que se relaciona com a morte porque estás muito mais bem preparado agora para falar mais abertamente dela porque cêe viu a morte uma centena de vezes presente e eu não duvido mais de sua capacidade, não de desmistificação, mas muito mais de interiorização, cê me entende?
ÍNDIO. aham... mas olha... rola mais cerveja, Burguês? tô durango.
LORD. rola sim. mas pô, todo esse papo sobre morte...
ÍNDIO. que que tem?
LORD. me deixou com frios nos pés e aqui na nuca também.
ÍNDIO. e eu nem te falei da metade das mortes que eu vi... uma centena delas como cê falou...

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