segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

A VISITA


A VISITA

(...) Vivia de algum modo aqueles duros e doces dias sem leme algum; singrando os rios das dúvidas. Ceifando campos de espinhos. Olhando-me no espelho e não vendo mais o meu reflexo. Havia me tornado o doce vinho das incertezas baudelerianas descendo-me goela abaixo mesmo nas horas mais fustigantes e miseráveis daqueles dias. Eu havia me tornado o próprio puteiro. Odisseu preso no olho do ciclope.

Aí que um dia recebi a visita dela. Tolice era acreditar que ela nunca fosse me achar. Ao contrário das cadelas que ao meu ver são bem mais prudentes, sensatas e realistas, as mães acham que podem lamber seus filhotes a vida toda. O que é um grande engano. Mas aí então que eu acordei com batidas secas na porta e pus-me assustado no centro da cama vendo tudo girar em minha volta. Minha cabeça era um torno de fundição girando girando enquanto as batidas secas insistiam martelando o crânio. Olhei pra Alex que dormia feito um anjo ao meu lado como se nada daquilo estivesse acontecendo. Os olhos do sol penetraram vivos e pontiagudos pelo vão da janela semi-aberta derramando sua luz pelo chão do quarto. Levantei muito a contra gosto e fui ver quem era. Abri um palmo da porta e dei com rosto gordo de Dona Dalva que vinha anunciar a visita ilustre:
“Esta senhora esta lhe procurando!” Tomei um caralho de um susto quando a sombra d ela se colocou atrás de Dona Dalva. Pediu licença e foi entrando devagar, deslizando seu olhar lúgubre por todo o interior do quarto. Caminhou ate á janela e ali ficou por longos e torturantes minutos. Voltei a me sentar na cama ao lado de Alex que continuava dormindo. Não sei por quanto tempo reinou um silencio azedo e mordaz ali dentro. Deixei que ela puxasse primeiro o sabre da bainha e desse inicio a esgrima como sempre o fez. E foi exatamente o que aconteceu:
“Tal e qual o pai.” Disse ela finalmente.
“Que que tem ele?”
“Gostava de viver na lama com os porcos.” Respondeu ela. Sobreveio novamente o silencio carregado de azedume. Ela parecia um monte de escombros escorada na janela com seu olhar triste. O olhar triste das mães. Ouvi dali as primeiras portas de ferro dos bares erguendo-se preguiçosamente juntamente com os primeiros palavrões que já se acotovelavam pelas ruas estreitas da velha Mauá. Era o puteiro arreganhando-se nos primeiros acordes do dia.
Alex dessa vez se moveu um pouquinho só na cama e ¼ de suas coxas lisas e brancas escaparam furtivamente dos lençóis e ali se mantiveram expostas, e eu tive vontade de amá-lo outra vez, o dia inteiro. Tratei de cobri-las. Era bonito ver ele dormindo. Puro como um anjo: tão longe e tão perto das tempestades da vida. Ela tornou outra vez:
“Não sei por que puxaste tanto a teu pai. É tal e qual teu pai: escarrado carne e osso. Sim, porque teu pai nunca teve alma.”
“Não comece, porra!!” Segurei minha têmporas inchadas que pareciam duas maças explosivas.
“A verdade machuca, eu sei. Mas ela precisa ser dita, não é mesmo?”
“Como a senhora descobriu que eu estava aqui?” Desconversei.
“Farejei tuas coisas. Tuas porcarias escritas ainda estão espalhadas pela casa.” Fui ate a janela me aproximando dela. Olhamos a rua, calados. Examinei de perto seus olhos cobertos por películas de lágrimas e senti a mão gelada de um cadáver apertando meu coração. O quarto transformara-se numa enorme pupila borbulhante de tristeza.
“O que a senhora quer, mãe?”
“Ver como estás?”
“Estou bem.”
“Não sabes o mal que estás fazendo vivendo aqui. Isso aqui é só lama e dor. Volta pra tua casa.”
“Gosto daqui, mãe.”
“Vais enterrar o que te resta da juventude aqui, nesse buraco?”
“Escolha minha. Problema meu.”
“Toda escolha é um caminho sem volta. Lembras disso.”
“Lembrarei, mãe.”
Se virou lançando o olhar para Alex que dormia esparramado na cama, parecendo uma flor.
“Não tenho mais controle de ti. Acho que nunca tive. Sempre fizeste o que te deu na telha. Não soube te criar.”
“Sou grato a senhora.”
“Odeias tua mãe, é isso.”
‘Não odeio não.”
“Odeias sim. Sejamos franco um pro outro. Fui o diabo na tua vida assim como fostes o fardo na minha.”
“Então estamos quites.”
“Estamos. Esquecerei que tenho um filho.”
Fez novamente silencio rasgado apenas por um brega antigo e tanatico que gritava lá de baixo de um bar qualquer que a vida era uma fatalidade. Em seguida, ouvimos o velho e majestoso apito de um navio atracando no Rodway. Alex despertou finalmente e da cama se pôs a olhar confuso pra nós dois. Tinha os cabelos desgrenhados e os olhinhos bem vivos e claros. Do jeito que veio ao mundo levantou-se e caminhou cadencioso com sua pele de leite até o banheiro. Alex não tinha pudor nenhum. Encantava-me o despudor daquele menino; sua pele branca e suave de leite. Ela veio de lá outra vez:
“Ainda por cima tornastes um aliciador de menores. Quantos anos tem esse garoto?”
“Alex faz dezoito domingo que vem, mãe.”
“Não interessa. Ainda é um menino. Não sentes vergonha disso?”
“Gosto dele, mãe.
“Nunca te entenderei mesmo.”
“É bom que não entenda mesmo. Nem eu me entendo.”
“O que tu és afinal?”
“Sou o que sou.”
“Ninguém é o que é simplesmente.”
“Pois bem. A senhora ta é certa. Tento ser um pouco mais do que isso.”
“Vivendo aqui nesse pardieiro?”
“Vivendo aqui nesse pardieiro.”
“Não vais agüentar viver aqui por muito tempo. Vais morrer nesse lugar.”
“Todo homem traz dentro de si seu próprio aniquilamento.”
“Tu e as tuas filosofias que só te empurraram pra lama.”
Ouvimos o barulho de uma descarga e em seguida uns risinhos vindo do banheiro. Alex se divertia pra valer, o putinho.
“E o teu curso?”
“Não tenho mais curso.”
“Abandonaste a faculdade?”
“Um bando de merdas metidos a intelectuais que perderam o humor. É isso o que penso daquela gente toda.”
“E o que vai fazer da tua vida agora? Ser um escritor e viver de brisa?”
“Posso tentar...”
“Achas que pode, levando essa vida? Sem ajuda minha?”
“Acho que sim, sei lá. Se não der certo, viro cafetão de puta ou então farei michê nas ruas.” Mais risinhos do banheiro. Ainda se encontra um pouco de humor na ressaca. Do cais, O Lloyd soprava com mais força demonstrando vontade de ficar. Acendi meu cigarro todo amassado e pude então relaxar um pouco olhando da janela o movimento preguiçoso dos passantes. Cedo, as putas já negociavam seus corpos pelas portas dos bares. O sol tinha ficado mais escroto e já começava a cozinhar a neura de muita gente lá fora, inclusive a minha. Na porta do “Leviannas”, alguém pregava as palavras de Deus:
“Bendito são aqueles que guardam as palavras dessa profecia, pois o dia do juízo está bem próximo e toda podridão desse lugar, meus irmãos, arderá nas chamas do inferno.”
Dizia o pregador com as veias dele saltando do pescoço grosso e empapado de suor. Perto dali, um bêbado estirado derretia sob a marquise de um prédio antigo, enquanto um cão lambia-lhe o rosto. As horas arrastavam seus grilhões enquanto a presença dela no quarto era uma enorme mortalha cobrindo tudo.
“Vim aqui pra abrir teus olhos, mas teu coração se fechou pra tudo.” Sua voz soou dessa vez rancorosa atrás de mim. O som rancoroso de uma engrenagem velha. “Tornastes um egoísta. Não respeitastes a minha velhice e a minha cegueira.”
“Cegueira? A cegueira é pior que a morte.” Pensei. Minhas fobras estremeceram. Virei pra ela disfarçando o susto.
“Como assim, cegueira?”
“Tenho catarata, esqueceu? O médico me deu seis meses, e uma operação na minha idade é arriscado.”
É, ela ainda sabia mover bem as pedras de um xadrez. As pedras que sempre me venceram.
“Mas não te preocupas não, tenho setenta e pouco, o bastante pra ter visto tudo que não presta nessa vida. É só esperar agora a cegueira chegar. Mas o pior de tudo não é a cegueira que na minha porta bate, mas a ingratidão de um filho que nunca tive. Gerei um filho ingrato. Ficas com a vida que escolhestes pra ti. Quando eu atravessar aquela porta, esquece que tens mãe.”
Sucedeu um longo silencio entrecortado de angustia. Um coração estranho e clandestino socava-me o peito. Ela finalmente dera as costas e vi seus passos se arrastarem na direção da porta. Contei mentalmente até dez e então corri para o topo da escada onde ainda pude ver sua silhueta curva desaparecer no vão do nada e gritei:
“MÃE! TE AMO CARALHO!!”
Mas era um grito surdo, empalado dentro de mim.
Quando voltei pro quarto, Alex estava sentado no centro da cama me chamando com as mãos, e eu deitei em seu colo e ele me acariciou os cabelos, e ficou ali ouvindo sem nada dizer, meu interior chorando baixinho o dia todo. Melhor assim. Parecia que entendia minha dor. Assim como eu, ele tambem havia matado sua mãe...

Em memória de minha mãe Eunice...
07/10/1929/ 17/09/2009

Um comentário:

  1. é pra isso que serve a arte: pra imortalizar os belos momentos da vida. esse texto me emocionou por inteiro. o resto é adereço de carnaval.

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