sábado, 26 de novembro de 2011

O ENTERRO DO ANÃO (CONTINUAÇÃO)

II- FRIDUS CARNE

Dobrei a esquina da Tamandaré e dei com o ‘Bar do Mergulhador’ ainda aberto, piscando seus letreiros de neon sujo. Senti uma angústia terrível. Uma vontade imensa de beber sem ter dinheiro. No entanto, aquele lugar me dava sorte. Sempre que ia ali, conseguia descolar alguma bebida. Acho que era o meu contato com o mergulhador, sei lá. A história é o seguinte: algum tempo atrás - bebendo um conhaque negro sozinho neste mesmo bar - eu contemplei a visão maravilhosa de um escafandrista do início do século XX. Ele bebia sozinho sentado nos fundos, próximo à janela de telas. Um ventilador enorme e pré-histórico girava sobre sua cabeça. O estranho é que só eu conseguia vê-lo ali sozinho, sentado àquela mesa, com sua roupa de escafandrista do início do século XX. Uma visão espetacular a daquele mergulhador. Todas as noites quando eu ia àquele bar, eu dava com ele sentado nos fundos, drenando sua cerveja através de um tubo de cilindro acoplado em seu capacete de bronze de uns dezesseis quilos. Nessa época, contei para alguns amigos sobre esta visão glorificada e todos foram unânimes em querer compartilhar esta visão comigo. Contudo, para ver o mergulhador, era preciso ingerir algumas doses do conhaque negro sem mistura, (tipo, nada de limão, puro mesmo!) e esperar até ele aparecer. O problema foi que nenhum deles viu coisa alguma. Passavam mal e vomitavam tudo. Certa manhã, acordei com um telefonema da mãe de um deles: “Você envenenou meu filho, seu filho da puta!” Certa vez levei o Carcamano até lá com a esperança que ele visse alguma coisa, mas o que ele conseguiu ver foi apenas sua cabeça desprendida do corpo, agonizando do outro lado da rua sendo lambida por um cachorro pirento. Só mais tarde é que vim descobrir que eu era o único a ser agraciado com aquela espécie de epifania. Nunca soube até hoje o significado daquela aparição. A percepção é uma verdade que mente. Ah, risquem isso!! tirei da Discovery Chanel. Pois bem. Parei onde? Sim. Subindo as escadas daquele puteiro. Uns caras mal encarados esbarraram em mim na subida. Segui subindo. Enquanto subia as escadas, eu entoava um mantra:
Mesmo sem grana vou beber! / Mesmo sem grana vou beber!
E eu precisava mesmo de uma dose de qualquer coisa pra esquecer aquela noite. Eu estava fodido. Não, você não sabe o que é um cara fodido, sem grana e querendo beber uma hora daquelas. Você tá aí no bembão, sentado, tomando tranquilamente sua cerveja, com grana no bolso, com seu empreguinho e com sua mulherzinha esperando em casa, e você não sabe o que é um cara fodido. Não, você não sabe. Mas não vou culpá-lo por isso. Sou eu que arrisco o meu rabo pra te dá prazer enquanto você fica aí sentado lendo essas páginas, rindo da minha cara. De toda essa situação. Você não tem culpa de nada, o ferrado aqui sou eu. Mas esta é a minha função.
Entrei. Tocava umas músicas sem esperança. Uma puta gorda e com bolsas nos olhos girava cansada em volta do ferro. Me escorei no balcão e fiquei olhando todos aqueles caras ali sentados de caralho mole olhando a gorda dançar. Alguém do outro lado apagou em um quadro o preço antigo da cerveja e colocou outro. Tudo numa lentidão que me dava nos nervos. A gorda dançava no palco. Conhecia bem o cara que estava atrás do balcão servindo as bebidas, mas ele certamente não lembraria mais de mim. A gorda dançava no palco. Pensei numa maneira educada de abordar-lhe, sem ofendê-lo. Fiz um sinal, ele se aproximou e eu engatei o mangueio:
“Escuta, meu camarada, é que, eu, não faz nem meia hora não, q-que, que fui roubado, saca? uma filha da puta me levou tudo que eu tinha e, e-eu, bom, não tenho nem um centavo pro conhaque, de maneira que, pô, dava só pra fiar, sabe, s-só uma dose daquele conhaque d-de um real?”
“Ele é dois, agora.”
“M-mas, há uns dias atrás eu paguei um real por ele. j-já aumentou?”
“Uns dias atrás, o senhor disse bem. além disso, não vendemos fiado.” Falou até que polidamente. Sem gaguejar. A gorda dançava no palco. Mordi os lábios até sangrar. Alguém gritou:
“Cai fora daí sua baleia velha do caralho!” Ela seguia dançando, indiferente aos protestos. Fazia agora acrobacias em volta do ferro. Depois arrastou-se de quatro no chão como uma porca nojenta. Parecia gostar das ofensas. Meu fígado começou a doer. Era como se houvesse um enorme buraco se abrindo; um vazio me devorando como a fome de uma flor carnívora. O número da puta finalmente acabou e ela pegou suas coisinhas no tablado. deu um cotoco pro cara da defesa civil que a xingava e em seguida vimos sua enorme bunda flácida desaparecer atrás de um cortinado puído e triste. Um bate estaca mais animado começou a tocar. Virei pro cara outra vez: “O-olha, d-daqui pro final dessa noite, arranjo esses dois reais e te pago. E-eu fui roubado, é sério!” O cara não disse nada. Seu rosto endureceu até se tornar uma pedra de gelo. Passou uma toalhinha fedida sobre o balcão e se afastou. Sem chance. Quando não se tem nada, você se torna um nada. A impotência é tamanha que a tua covardia se mistura com o medo, causando um estranho embaraço na voz. A impressão que se tem é que você está sempre mentindo quando está falando a mais pura verdade. E um troço estranho e foda. Por outro lado, quando não se tem dinheiro, se enxerga tudo. Uma parte do instinto ainda funciona. Olhei e vi um enorme travesti que bebia sozinho em uma das mesas. Havia umas oito garrafas de cervejas vazias, eu contei. Ela bebia a nona. Parecia bem animada ali sentada mexendo seu enorme corpo no ritmo da música. Trocamos olhares furtivos e ela me convidou com os olhos para sua mesa. Não tinha muito mesmo o que perder, por isso fui até lá. Sentei:
“Tá liso e quer beber uma cerveja, não é? Tava só te manjando daqui.”
“Uma dosezinha de conhaque negro, apenas.” Ela estalou os dedos. Veio outra cerveja e a dose de conhaque. Uma outra puta menos detonada subiu no palco. Dei uma golada no meu conhaque e ele desceu abençoado goela abaixo. O meu estômago fez um chiado como as frigideiras fazem quando se fritam os ovos. Olhei pra figura ao meu lado. Tinha uma boca grande e uns dentes perfeitos. Usava umas lentes descaradas da cor do mel. O gogozão até que era bem discreto. Os cabelos negros e longos desciam-lhe até as costas. Bem feminina, era. Se ficasse ali quietinho ao lado dela vendo as coisas funcionarem, ela poderia, quem sabe, me pagar mais umas doses de conhaque e tudo ficaria perfeitamente bem. Mas quando pensei que atingiria finalmente meu nirvana alcóolico, ela me veio com aquele papo estranho sobre estrelas:
“Procyon é a estrela mais brilhante no céu, cê sabia disso?”
“Como?” A dançarina parecia mesmo menos decadente que a outra. Sempre o mesmo número. Elas se dirigem cansadas até o centro do tablado onde está posicionado o ferro e ficam ali girando em torno dele como umas penitentes. Nunca inovam.
“Procyon é a estrela mais brilhante do céu, e ela nunca está só porque é orbitada por uma companheira anã branca, e o seu período orbital é de mais ou menos – aí ela pensou um pouco com o dedo apoiando seu queixo assimétrico – quarenta e um anos. é, é isso mesmo.
“Não estou entendendo o que está dizendo. Me desculpe! muito barulho, sabe.” Ela bebeu um pouco da sua cerveja e continuou:
“Existem estrelas de várias cores que são chamadas de estrelas anãs.”
Fingi algum interesse. “É mesmo, é?”
“A Procyon, por exemplo, é uma estrela anã.” Tomei uma golada do meu conhaque. Ele já estava pela metade.
“80% das estrelas que vemos no céu todos os dias são estrelas anãs.”
“Ah, é?” Bebi todo o restante do meu conhaque e pedi outro. Só faltava essa. Eu que já pensei ter visto ou ouvido de tudo na vida.
“Há a Syrius que também é tão brilhante quanto a Procyon, no entanto, seu período orbital é de 50 anos.”
“50 anos, só?”
“A mais próxima de nós, cê quer saber?” Poderia dizer-lhe que não, mas ela estava pagando os conhaques. “é, bom, talvez...diga lá!”
“É a Centauri que tem uma cor alaranjada com riscos amarelos e que também são anãs. São as que mais brilham em todo hemisfério.” Tomei uma golada considerada do meu conhaque e olhei muita séria pra ela:
“E como cê sabe de tudo isso?”
“Meu tio. Meu tio era um anão e estudava as estrelas. Me colocava em seu colo e me falava sobre elas, enquanto afagava meus cabelos.
“E cadê seu tio?”
“Foi enterrado esta tarde. As cinco horas da tarde. O mesmo dia e horário em que ele nasceu. O mesmo dia e horário em que foi descoberto uma estrela bem parecida com o sol...” Me calei e fiquei pensando em sei lá o quê. Ela virou-se pra mim de novo e dessa vez disse:
“Cê já foi a um enterro de um anão?”
“Como?”
“Cê já foi a um enterro de um anão?”
“Não, nunca!! nem sabia que anões tinham enterro.”
“É muito engraçado o enterro de um anão. Depois de mortos, ainda diminuem de tamanho.” E assim, de repente, ela desandou a rir. Riu bastante. Seu imenso corpo tremia todo. Risos espasmódicos que faziam tremer copos e garrafas sobre a mesa. Achei que ela não ia parar nunca e comecei a rir também. Nossas risadas ecoaram no salão. A vida é mesmo louca. Depois, ela foi ficando triste, e me disse:
“Existem estrelas que falharam por serem pequenas demais para queimarem, como é o caso de algumas anãs vermelhas. Elas brilham uma pequena porcentagem de sua luminosidade e depois morrem. Essas estrelas nunca vingam.”
Olhei e a puta continuava a girar em torno do ferro. Podia escutá-la cantar:
“ferro nosso de cada dia,
rogai por nós, pecadoras,
assim no céu como no inferno...”
Notei que havia um talho feio que partia do ventre até o glote da puta. Uma visão dolorosa do capeta. Embora fosse de fato um pouco mais decadente que a outra, parecia conter um pouco mais de vida. De brilho. A música realmente ajudava. Sua enorme bunda vibrava. Uma outra dose de conhaque veio e eu fui ficando mais alegre. Olhei para os fundos e notei a presença do mergulhador sentado próximo à janela de telas. Sabia que viria. Ergui um brinde a ele, mas ele não retribuiu. Nunca retribui. Sempre na dele. Calado. A vida é um mistério. Relaxei um pouco. A noite avançava cambaleante. O travesti ao meu lado não falou mais nada sobre as estrelas. Mergulhamos numa espécie de silencio enebriantemente doce. Olhávamos a puta que seguia com seu show. Inclinada para trás, junto ao ferro, mostrava triunfante à plateia, sua imensa buceta encarquilhada querendo engolir o mundo...

Manaus, 19/09/2011

Um comentário:

  1. http://revistaclaraboia.blogspot.com/

    Já estamos com a claraboia 2 olha o link acima e veja a revista digital

    abraços
    T.R Borges
    http://coresdaacidez.blogspot.com/

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